03/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 305 a 307

© DA.


305

Quinta-feira,
29 de Abril de 2021

Encanecido senhor titubeia a sós entre oliveiras.
Anda por ali há anos milenares, d’esquecido rumo.
É de cambada memória, talvez nem vivo seja.
Será talvez algum verso, bípede orquídea, vaso gretado.

António José Tinoco Quimbres, eis dele a graça.
Foi pai de uma menina (Cristina) há séculos priscos.
Tininha foi colegial de Santa Joana Princesa.
E foi esposada por um magnata dos curtumes.

História-de-Portugal, ai quanto nos urracas!
Quantas inezes nos degolas, como a vacas!
Quantos crus pedros nos entenebreces!
Ai Portugal, nem sei que exclamação mereces!

Já todos fomos futuros, já tal veneta nos passa.
Tredas veniagas traficamos todos, irmãos.
Assomos de franqueza se nos rareiam, a nós polutos,
brutos, piscos, mani’dani’nhos, d’inveja verdes.

Ou não. Conheço alguma excepção, rara embora.
Em raiano trânsito, vizinhei já certos bondosos.
O mais em livros, vá – mas também em pessoa.
Não muitas vezes. Até menos cada vez mais. Mas já.

306

Batem surdamente no peito do ar as horas
Nada nos separa de esquecimentos & olvidos
É venatória a condição de sermos (a) desoras
Feitos uns por vero amor, outros por apatia concebidos.
Em autocracia rejamos nossa passagem não-duradoura
Surdem os brônzeos dobres logo sumidos
A vida é toda papel – e a morte, viril tesoura.

307

    (Haja quem apode as próximas linhas como próprias de um solipsista-mórbido-necrófilo. Honi soit qui mal y pense: e que os pariu.)

    Ou em sonho se deu a visão, ou vi que sonhava – isto:

    Em uma certidão de vero pergaminho (e não em fantasmático PDF), a data da minha própria morte. Desfocada, a epifania faz-me hesitar ainda: 19 de Julho ou 19 de Outubro? Nítido, o ano: 2042. No primeiro caso, sábado. No segundo, domingo. Devo ter sorrido em transe: nada mau, ainda falta um bocadito. A cumprir-se, tal passamento dar-me-á por concluso com mais um do que anos de idade o senhor-meu-Pai perfez – e que foram setenta & sete. Mais um que meu Pai: e menos oito que minha Mãe.
    Encaro a morte como pagamento de vida, perdão, de dívida contraída no ter-nascido. O Povo bem faz por bem-humorar, como pode & sabe, tal inevitabilidade sem excepção: esticar o pernil, bater a bota, eu-não-vou-levam-me. Etc. E o campo-santo, vulgo cemitério e/ou necrópole, é apodado de jardim-das-tabuletas ou -dos-pés-juntos.
    Só não quero esticar/bater/ser-levado sem ter vivido antes. Já o escrevi alhures: Serei um dia uma sombra em uma frase de alguém. E também: A minha morte começou já, lá nos sítios onde estive & a que jamais voltei ou voltarei. (Aproveito, hoje, para adir esta pormenorização: em sítios incluo pessoas.)
    E se for antes de 2042? Se for antes de 2042, é antes de 2042. Morrer é tão-só voltar a um não-eu que antes de concebidos já não-éramos. É reingressar em um éter irrestrito não atrapalhado pela sentimentalidade nem burlado pela pretensa racionalidade antropóide. Mais simplesmente posto: há-de ser um descanso.



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