25/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 408

© DA.


408

Segunda-feira,
24 de Maio de 2021

    Intoxicaram os soldados de Pervitin, a droga-acelera.
    É o esplendor equívoco da guerra, dos cães-bípedes à solta.
    Podeis dizer que já passou, que o-que-lá-vai-lá-vai.
    Não, não vai: enquanto humano, o planeta será bélico.
    Provas em contrário, não as há, nunca houve, isto é certo.
    Os Stukas de hoje podem não ser tripulados, dá o mesmo.
    Ao telecomando está alguém envenenado de outro tipo de Pervitin.
    Os impérios são agora pangeográficos, impera o virtual-electro.
    Genocídio é coisa que não passa de moda.
    A vítima de ontem quer ser algoz logo que possa.
    Os consumidores são telecomandados por fazedores-do-desejo-artificial.
    As gaiolas hipercomerciais fulgem de luminárias ar-condicionadas.
    Ainda há livros – mas é quase tudo merda acéfala, oca, sem calibre nem quilate.    
    Acertadamente andareis apodando-me de pessimista: sou-o.
    Vêde o pós-colapso soviético: o ror (horror, antes) de hipermegagigamilionários instantâneos que dos destroços se alevantaram a comprar & corromper tudo.
    Vêde por aqui os tolinhos-de-esquerda & os abutres-de-direita reivindicando pátrias que nunca leram nem viram mais gorda.
    Não, não acho remédio nem escapatória: o humano caga no prato de onde come. E os mais soezes indivíduos escapam à punição que nunca deixaram de merecer.
    Assim é.
    Em alternativa, restam praias de conhecimento por conquistar. Toda uma nomenclatura aceita ser ressuscitada em prol de nova oportunidade. Há que desentulhar toneladas (nem sempre figurativas) de papel. Ontem, dei-me à revisitação de Cesário Verde / Silva Pinto. Boa foi tal hora. Para hoje, resguardado em tugúrio da macilenta meteorologia externa, sobrevoo o Garrett doutrinário compendiado por João de Castro Osório, o bom João de Castro Osório que voluntária & generosamente nos guardou cópias de Camilo Pessanha. Mas não só. Tenho acesso à gravação em filme (meados de 60/XX) de Simone de Oliveira cantando, sobre fundo orquestrado por Thilo Krassmann, Sol de Inverno, canção composta pela dupla Nóbrega e Sousa / Jerónimo Bragança. Molham-se ora (16h23m) os cortinados de sol resistente. Certa dúbia provisória claridade assedia & toma o quarto que tripulo.
    Em a francesa claridade de Avranches, estava uma família Bignon.
    Estão vindo os naziAlemães, corre a tragédia chamada Junho/1940.
    Os Bignon estão de regresso ao torrão-natal – Gisors, Normandie.
    É o que me ensina o documentário Apocalipse – Hitler Invade o Oeste (© CC – Clarke, Costelle & Cie., 2020).
    São imagens peremptórias, testemunhas deponentes da humana desgraça.
    Outras recorrem já a pantalha da atenção: documentos dactilografados escalonando o quotidiano da Cidade-Tomada-&-Dominada; um jovem chamado António José Parreira do Livramento; outros dois: Adrião & Leonel; outro: José Fialho Gouveia; e um John Cleese já entradote em décadas – mas inteligentíssimo (como) sempre.
    Pode o passado ser contemporâneo do porvir? Sê-lo-á, por enquanto não sei, hei que esperar (oxalá que muito). O que agora conta, contando vou. Contar não é talvez o verbo mais apropriado, ou feliz, para o que pretendo significar. Não sou grande contador, valha a verdade. Referia-me (o que agora conta) ao que se me impõe à atenção. Exemplo imediato: Ernst Gottlieb Baron (1696-1760) tocado em theorbo alemão (teorba ou tiorba, cá) por Chris Hirst. Ou Käbi Laretei com seu Chopin. E o Sol fez-se homem, lá fora no mundo aberto. E Bob Dylan faz hoje 80-anos-80, c’um caraças!
    Vem depois Miguel Landres, mui bom moço.
    Fez maus casamentos, que remediou queimando-os.
    Outros investimentos correram-lhe de melhor feição.
    Com assento nos proventos, viveu algumas viagens benfazejas.
    Contou essas idas & partidas a uma amiga, Cinda Telles.
    Cinda fez & organizou toda a recolha de dados proeminentes.
    Anos ultrapassaram anos, os papéis dormiram intocados.
    Então, uma consulta médica de rotina detectou o mal.
    Era nessa jóia preciosa chamada pâncreas.
    Depois da madrinha, foi Cinda a ser informada.
    Era tumor, era grave, seguia em avançada retaguarda.
    Voltou a chamar Cinda, pedindo-lhe que apressasse o livro.
    Cedeu-lhe mais fotografias dessas viagens felizes.
    Em Maio, as coisas bufaram pressa, recolheu-se à clínica.
    Teve alta a 2 de Junho, Cinda & o marido Cláudio foram buscá-lo.
    A primeira ex-mulher de Miguel quis saber se podia visitá-lo.
    Ele respondeu-lhe via Cláudio que agradecia – mas que não viesse.
    Estava muito debilitado, mal suportava a ideia de falar.
    Apagou-se nas primícias de Julho, antes de fechado o livro.
    Acontece muito – mas a ele, Miguel Landres, uma vez bastou.
    Trezes anos antes da terminação de M.L., fez uma viagem ferroviária Luís Cabrita Tropa Ávalos, recolector de curiosidades orográficas & corográficas pátrias. Apeava-se em pontos esquecidos até do Diabo, quanto mais de Deus. Botava-se a andar extensões cujas peculiaridades lapijava no canhenho de capas metálicas. Em Novembro, levou à tipografia a resma dactilografada. A 15 de Dezembro, o volume foi exposto nas montras livreiras. Teve modesto acolhimento crítico & comercial, mas ainda hoje é referência para os amadores de territórios visitados por quem sabe ler o que vê.
    Não faltam livros. Algo neles materializa a fantasmagoria do pensa-&-fala-só. Universalizam o privado, tornam particular o alheio. Convénios podem (& devem) ter lugar como ocasiões de confronto de leituras. Estas, todavia, são tão solitárias quão as escritas que as tornam possíveis. Essa solidão não tem de ser doentia. É anátema que não merece. Nesta casa, alguns vivem vidas bastante recorrentes. Uns há chegando a velhos como pessoas sábias. Outros repetem-se de mais, tornam-se de uma inconveniente impertinência que transtorna. Ou então é o olhar-ledor que se modifica, inocentando-os ou culpando-os de coisas por que não são responsáveis. Acontece-me pairar sobre releituras que me indicam, a mim mesmo, como outro. Ora, disto não vendem eles nos tais McDonald’s referidos na 14.ª linha do 405 deste livro mesmo. Ora.



2 comentários:

cid simoes disse...

Não seja pessimista, este bípede vai continuar construindo momentos maravilhosos intercalados no que há de mais horrendo. Alguns procuram movimentar-se neste caos tentando apazigua-lo, é o que venho fazendo e isso me satisfaz.
Sem estar a ser pessimista, e sem que ninguém me possa contradizer, afirmo que no próximo milénio não seremos muito diferentes.
Continuo a ler e apreciar o que escreve. Saúde da BOA!

Daniel Abrunheiro disse...

Cid, bom dia.
Não ligue aqui ao misantropo. Vou preenchendo vazios com palavreado. Mas agora já sei que tenho um leitor. A gente vai andando & desandando, que agora até as meninas já vão à tropa.
Grande abraço, amigo, e queira crer na gratidão que sinto.
DA

Canzoada Assaltante