17/05/2021

PARNADA IDEMUNO - 362 a 365


362

Domingo,
16 de Maio de 2021

    Morreu Diniz de Almeida, militar de Abril. Tinha 77 anos. É um dos rostos genuínos da Libertação. À boa figura física juntava a boa-prática pró-social: coronel na reforma, era psicólogo-clínico & médico-dentário, exercendo pro bono a favor das gentes do Bairro da Boavista, ali a Monsanto, Lx. Merece reconhecimento público. Não sei se o terá: afinal, não engordou à pala do Estado. Em humana graça será porém recordado por as pessoas decentes que este País ainda tem.

363

    Depois de cerrada invernia, o cair da tarde fez-se rutilante, fulgura de ouro-para-todos o pré-crepúsculo. Muito longe desta idílica sensaboria, os naZionistas de Israel perseveram a frio no genocídio palestiniano. Algo lhes ensinou Heydrich, pelos vistos. O Atlético Madrid pode ser campeão de Espanha domingo que vem, vencendo em Valladolid. Outras notícias raspam-me o casco mas não me abordam o convés. Tenho aprendido a bocejar & a encolher os ombros como um campeão de cinzas. Impera em mim um interesse cada vez mais selectivo. Termino hoje a leitura de O Labirinto da Saudade – Psicanálise Mítica do Destino Português, de Eduardo Lourenço, obra de que a Gradiva, em vinte anos, fez dezanove edições, rara coisa cá na lusa parvónia. A seguir a Lourenço, Sófocles (Édipo em Colono, tradução portuguesa de Maria do Céu Fialho, in Tragédias, edição de 2003 da MinervaCoimbra). Não se está mal. E lá fora, a ampla luz – e aqui, insulação sem insolação.

364

    Sentado, fiz um breve périplo pelas figuras & vozes portuguesas seguintes: Mirene Cardinalli (1942-1969), Rui de Mascarenhas (1928-1987), Celeste Rodrigues (1923-2018) & Alberto Ribeiro (1920-2000). A irmã da divina Amália foi a de maior longevidade. A.R. viveu oito décadas. Mas Rui (59) & Mirene (27 apenas) foram-se muito cedo. Elas & eles, vozes bonitas todos – e sabiam cantar, ainda que nesse portugalinho-sem-escola. O meio tornava-os autodidactas, mais uns que outros, mas assim era por regra. Tal como a sua gloriosa mana, Celeste não teve infância fácil. Deixaram, enfim, um fio de obra cantada que hoje me deu para, no ócio claustral destes pandémicos tempos, revisitar com gosto & proveito.

365

    A luz gravada a preto-&-branco de um dia de há 67 anos mana da máquina para este quarto em semipenumbra. É panorama duas vezes distante: no Tempo & no país em que fizeram o filme. Numa das cenas, ri a bom gargalhar um rancho de crianças. Não é improvável que (oxalá) muitas sejam vivas ainda. Quanto aos adultos, talvez algum. Há muita sabedoria na produção deste rosário de imagens. As figuras orientam-se por marcações invisíveis a meus olhos. Há agora um bosque. Flores, rapaz & rapariga. Incipiente idílio, história antiga como o firmamento, o céu da noite coalhado de lumes frios. A constante pulsão de sobrevivência (do indivíduo como da espécie) traspassa a condição. Nesta acepção, a passagem para o humano estatuto merece ser tida como capaz de dignidade, trágica sempre, cómica em momentos menos maus. É de noite agora: no filme como nesta casa. Amanhece já lá. É uma manhã de chuva. O pretérito é presente, mercê da arte & da técnica. A luz persevera, avara de cores mas não de sentido.
    Corre o filme, corre-me a ideia em uma noite destas duas diversa. Era Outubro, ali muito perto do rio. A temperatura baixara bruscamente. A rua era quanto tinha de momento por casa. Pouquíssimo trânsito, nenhum comércio. Era uma daquelas noites que permitem ao solitário a compreensão da desmesura da vida: uma compreensão sem esforço, sem estudo & sem remédio. Outro homem: parecia vir arrastando um peso tremendo, mas podia ser só fadiga, ou bebida, ou ambos tais castigos. Assim veio, assim passou. Não deve ter-me topado entre as colunas da passagem aérea. Seguiu na direcção da gare, dissolveu-se em seu próprio filme. Voltei a topá-lo meses depois, mas então de dia. Sempre naquela zona, parece – entre a Estação Velha & a Casa do Sal. Decerto se apercebeu muito antes de mim da tal desmesura. Não sei. Sei poucas coisas. Costumo estar atento para aprender sem a intransigente & demasiada luta que a vida dá para ser apre(e)ndida.
    O Inverno era outro nestoutra lembrança: ando então no Liceu da Infanta Dona Maria. Na biblioteca, descubro um volume de capas verdes, acho que letras douradas, tenho a certeza de o autor ser o velho Fidelino de Figueiredo. Requisito-o, é um manual da história literária nossa. Na Primavera que vem, faço dezasseis, talvez dezassete. Dezasseis, acho. É quando a rapaziada & a raparigada-queque da Juventude Centrista têm por santos-vivos a João Paulo II & Lech Walesa, polacos ambos, ambos anticomunistas. The Stranglers estão na mó-de-cima com Golden Brown, os Orchestral Manoeuvres in the Dark também voam de Enola Gay. Posso estar a fundir anos lectivos, não tenho maneira de ser mais preciso nem de prestigiar & legitimar o que narro com mais assertiva acuidade. Vou no autocarro, não chove mas está frio, às cinco da tarde já não é de tarde mas de neonoite. Vejo passando na rua a Lena. É ali na esquina da Brotero, ela passa direita a S. José. Não somos da mesma turma. Ela é uma das da seita JC/CDS. Sim, mas é bonita. Bonita e não tão frívola quanto o resto daquela pandilha filha de médicos, engenheiros, empresários, advogados, lentes. Só nos falámos uma vez. Foi no ginásio, comentámos o basquetebol em curso, equipas mistas, torneio interturmas. Eu era da Turma H, ela da A. Pelas letras, dá para perceber logo que o pai dela era cardiologista, enquanto o meu, pintor-cerâmico. Nunca mais a vi, ao contrário daquele sem-abrigo que faz o circuito Estação Velha / Casa do Sal. Não escolhemos os olhos com que nascemos nem as visões que a vida nos atira ao focinho. Escolhemos tão-só como menti-las com fino aticismo.


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Canzoada Assaltante