© Robert Doisneau
311
Sábado,
1 de Maio de 2021
Maçã, bolachas-de-limão, chá-preto-limonado em garrafa-termos, duas sandes, uma de presunto, outra de queijo-de-cabra. Também no bornal, um almanaque-de-bolso com muita sabedoria: botânica, geografia imperial, zoologia (doméstica & exótica), biografias de grandes-homens, astronomia & adagiário-moral. Pernas ao caminho. Às oito da manhã, uma boa chávena de abatanado ao balcão do Henrique. Bons-dias ao Jorge Colaço, que veio ao mesmo mas com cheirinho. Sair, começar deveras o périplo.
Na Sofia, passam Virgílio & Maria José. Ele está doente – não anda, está. Uma cena triste: em frente à Palmeira, morre de repente o cavalo do carvoeiro. O animal, cujos olhos miram o céu de Coimbra, posa em uma espécie de abandono à humana. Não parece um mero animal morto, semelha antes um soldado que a debandada pânica esqueceu. Junta-se maralha, há que contornar os mirones, seguir pela Torre, respirar as fruteiras da Manga, haurir o peixe da Praça de régio patrono, subir a do Sá, pousar um pouco na Sereia, comendo aí a maçã, um gole de chá.
Tudo acontece a todos agora. Cada vida por aí em processo, sem excepção. Uns passam, outros passeiam – todos vão, mesmo julgando ficar.
Maçã já foi, talvez já na Portela uma das sandes marche, lá em baixo o velho Mondego, esse tão antigo verso a céu-aberto buscando a rima terminal na foz da Figueira (cf., no futuro, os versos 13-14 do 323).
Surdos estrépitos de ouro reviram o folhedo arbóreo.
Ampla solação bendiz as casas, mesmo as mais pobres.
Aos Arcos, a idosa arfa, mais calor do que previra.
Na de Herculano, gaiatos biciclam intrépidos, felicíssimos.
Chegou Maio. É mês de rondar os áditos mais florais.
Abril trovejou algumas vezes, nem parecia coisa dele.
É longe o Tovim, vêm a pé de lá os canteiros, as hortaliceiras.
De uma destas (Eugénia), são canopeias os olhos faiscantes.
(Esta observação líric’ocular não consta do canhenho de marroquim vermelho enumerado in 299-III.)
Do bornal, já só restam duas bolachas, meio termos & o almanaque. São já as 18h14m, parece mentira como se evola a passagem. Há muito foi removida a triste cavalgadura de tracção. Última paragem antes da noite doméstica: balcão do Henrique. Mais pessoal a esta hora. Malta trabalhadora, bebedouro dos humildes.
Enevoa-se o crepúsculo.
Uma ligeira fri’ar’agem.
Não crepita áurea já a folhagem.
A estelar Eugénia vendeu tudo.
312
Era por a alva
Do dia esperado
À luz que nos salva
E nos tem salvado
E rosas no quintal
Rubis descobertos
Esconjuram o mal
E os dias incertos
E como Vos dizia
Pela alva era
Nascendo o dia
Pura primavera
Um cavalo branco
Na mais verde neve
Só ele é que sabe
Quão morrer é brando
Era já futuro
Perdido presente
É só diferente
Mas não menos puro
Sob a velha arcada
Entre fumadores
Conversa asseada
Entre os doutores
E velhas rameiras
Aves da cidade
Quanta ansiedade
Tantas bebedeiras
A nomenclatura
Do catalogado
Dá literatura
Ao mais bem estudado
A areia mais fina
Dessa d’ampulheta
A todos destina
À final valeta
Porém enquanto não
Dobra o final sino
Cornos ao destino
E badalim-dalão.
313
Espera por mim, Dália
Não te vás embora
’inda não é hora
D’ir por essa álea
É rosa-poente
O sol caducado
Vinde jantar, gente
Que está preparado
Dália, quão teimosa
Alfim me saíste
Pois ’inda não viste
Quão maravilhosa
É a égua branca
Na neve encarnada
E como tão branda
Vive e mais nada
Rostos preteridos
E frases cortadas
De bocas caladas
E olhares feridos
A praça é deserta
E, purificada,
Lua à hora certa
Jamais atrasada
Singeleza bela
Prisca adolescência
Esperar é ciência
É rosa à janela
Estuda a ossatura
E a musculação
Muita curvatura
Mas um só coração
Pomares odorosos
Crepitosos frutos
Rios sinuosos
Altos aquedutos
E enquanto não
Tange o bronze eterno
Dália, ser-te-ei terno
E badalim-dalão.
314
Em claro madrigal
Mesmo noite sendo
Al nos vai vivendo
Pois que nem tudo é mal
Rosa renascente
Murcharás sozinha
Semelhante a gente
Pobre e coitadinha
Tilinta o gatito
A gorja-campainha
É da dona Brito
Que é já tão velhinha
Potro transparente
Mais que a neve puro
Figura de gente
De um melhor futuro
Sedutora, bela
Singela matina
Digna de janela
E d’áurea bonina
Lá da cidadela
Descem tão más-novas
Que funéreas trovas
Dão de Inez, a Bela
Cruento infante
Há-de bem vingá-la
Surdo e trovejante
D’interdita fala
Da arte do pranto
Manha ou malícia
Caso de polícia
É chorardes tanto
Fina e dourada
Fêmea proibida
Talvez noutra vida
Seja apresada
Mas por enquanto não
Vida, só há esta
Toque o sino em festa
E badalim-dalão.
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