27/09/2020

VinteVinte - conclusão da entrada 60 (XIV a XXIV)

 

(XIV)

 

(O corpo só uma vez.

A vida a uma só voz.

Não dá p’ra tentar outra vez.

Todos & cada um de nós.)

 

(XV)

 

(Um destes dias vou ter de ir à rua. Não sei como reagirei à quotidiana dinâmica desse labirinto simples. Maio vai a 2/3. Eu vou a mais que isso.)

 

XVI

 

Fomos jantar a uma esplanada antefluvial de bons ares, talvez 1988 fosse o ano, não consigo precisar, já não comunicamos há muito, Raquel, Venâncio, Clarinda & eu. O carro de Raquel tinha leitor-de-cassettes com colunas potentes, curtimos os Rainbow de que o vocalista era o grande & saudoso Ronnie James Dio, o On Stage gravado ao vivo na Alemanha, onze anos antes talvez, 1988, 1977, já não sei, já não hei-de saber.

Raquel separou-se de Venâncio & morreu uns (poucos) anos depois por Lisboa em casa da irmã, qualquer coisa má na zona renal. Venâncio recasou-se, desta vez a vítima foi uma norueguesa lindíssima chamada Sigrid, foi com ela para Kolding, na Dinamarca, aí por volta de 1998, 99, mais não sei. De Clarinda sei – mas não digo.

 

XVII

 

Ontem – como há dez, doze, dezoito, trinta anos – acheguei-me ao espelho, espumei as queixadas & raspei a barba. Gostaria de fazer o mesmo à espuma de certos sonhos: passa-la a aço. Era uma barba de vários dias, desfi-la com lentidão paciente. Demorei mais tempo do que para escrever duas páginas destas assim(-assim) que todos os dias eu etc.

 

XVIII

 

Algures em remoto arquipélago nórdico

Qualquer coisa no forno perfumando a cozinha

Poucas pessoas, alguns animais, prisão nenhuma

Gasalho & agasalho garantidos, vento correndo aberto

Piano afinado, enciclopédia completa até 1960

Ninguém ao leme, cada qual sabe onde ser

Todos a contas partilhadas no partilhável

O que só a cada interessa, só a cada se endereça.

 

Poucas pessoas, disse. Quatro, precisamente

Dois cães, quatro gatos, aves inumeráveis pelo céu

Provisões que duram invernos, racionadas sem dor

De outro mundo, alguma rádio, jornais que o barco mensal traz

(Encantador anacronismo das novidades atrasadas)

Foi em outra ilha que se deu um caso-de-sangue

Só neste poema disso chega notícia à gente de que falamos

E depois nem cinza de esquecimento, nem cheiro de século.

 

(XIX)

 

(Nunca esqueço o esquecimento,

mormente o deliberado.

Não aqueço tal assento,

nele não fico sentado.)

 

XX

 

Dizemos

– Estou a pensar nisso –

Mas é o pensamento

Que nos faz dizer isso.

 

(XXI)

 

(Sei menos do que digo.

Sei mais do que escrevo.)

 

XXII

 

Páginas, rios geométricos procurando a foz.

Improvável demanda mas honrosa.

Aspirantes à oficialidade do testemunho.

Deponentes de estrita humanidade singela.

 

Publicadas embora, fomentam nova discrição.

Todas? Nem todas.

 

Não há caminhos iguais.

Uma só meta porém os termina.

 

XXIII

 

O ódio que temos aos ricos

é feito do nosso amor ao dinheiro.

 

 

XXIV

 

A chuva abriu caminho pelas traves do casebre.

Todavia o canto de pedra chispava lume.

Enxúndia de galinha em calda de arroz.

Chá-de-folha-de-laranjeira, farinha de milho.

O rapaz já jornadeia por conta da quinta.

As duas meninas são criaditas da boa senhora.

 

O cura vive de seis paróquias paupérrimas

– mas vive: e com mais do que havia o Senhor.

Veio então a tifóide: adeus, meninas; adeus, senhora.

O cura não as curou, sacramentou-as, deu-lhes céu.

O rapaz, homem já, embarca para sempre

– como as meninas, mas em modo diferente.

 

Destas crónicas te fizeste escrivão em puridade.

De pouco mais que esmola vives a pedra a teu canto.

Obsolesce ser como os d’antigamente, tinta gente

de expectorado sangue, febricitante ardência.

Todavia não desistes ou embarcas, antes ficas:

por um punhado de arroz, magra enxúndia de versos,

 

que linhas,

não galinhas,

sempre são.

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Canzoada Assaltante