51.
ELEMENTARES APARATOS
Coimbra, terça-feira,
12 de Maio de 2020
I
Maio oferece-nos esta tarde o fulgor da trovoada. Avariada, glauca, a luz é fantasmática: uma pré-noite das cinco da tarde. Gosto (sempre gostei) do espectáculo. O meu materAvô, Carlos dos Santos, temia a força indómita do trovão, da brutalidade do relâmpago. Sentia em si a vulnerabilidade de bicho-da-terra tão facilmente espezinhável pelo céu. Não sei se Deus era para ele mais do que um bonecreiro de santos de capela. Conheci-o pouco (refiro-me ao meu Avô, não a Deus) – faltavam-me cinco dias + três meses para os oito anos de idade quando ele morreu de trombose fulminante. Recordo o velório, o funeral, as mulheres da família, os homens taciturnos, algumas (poucas) crianças, primos remotíssimos. Foi em Março, dia 3. A minha Mãe, filha dele e de Cândida Leite, também se finou a um três-de-Março, mas o de 39 anos depois. Agora, o neto de Carlos & Cândida usufrúi da trovoada vesperal. Água grossa vara a obscuridade. É bonito.
Um pouco antes das seis, todavia, o Sol raia sem fronteira. A claridade não é propriamente diáfana, não digo isso, mas é forte, joga gato-rato com o papelão nubloso da alta estepe celeste. Tiro a camisola das mangas longas, fico em curtas. Frio nenhum. O cárcere, de cortinas descerradas, respira filtros visíveis: pó diamantino em frechas oblíquas no sentido janela-soalho. É como um amanhecer-do-avesso. Bonito também, aliás.
De resto, pouco resta. As televisões continuam a fazer carnaval do infanticídio de Atouguia da Baleia, concelho de Peniche. Por outro lado, os números que agora contam já não são os do Euromilhões mas os do COVID-19. Vulgaridade, sensacionalismo, circo abjecto do “social à solta”. A tentação misantrópica é intensa – e eu até em sonhos cedo já a desprezos violentos pelo bípede-antropóide-piteco-mui-pouco-sapiens.
Mais além, sem história nem testemunho, existências dão de si em elementar aparato. Falo tanto de minérios quanto de canaviais. Encruzilham-se moções, alguém ficou de levar o que jantar, entretanto em horta um velho queima restos que o vento da noite desvarreu para dentro daquilo a que chama dele. Imagino isso além-d’aquém, o que não resulta difícil. Acho piada às pressas, às ânsias, aos rancores a preto-e-branco. Já participei alguma coisa desse tipo de coisificação. Desembarquei há muito de tal & tão aflitiva nave. Soube eu ontem que certo par-de-velhas-jarras se anda comportando mal – acintosamente mal – para com uma terceira-parte que, a meu saber, continua pessoa, gente & humana. Foi noticiário (mais um, aliás) triste. Não me surpreendeu – mas teve o (des)condão de me fazer murchar orelhas & cauda. Levei esse incómodo para a cama, sobre que me ficou caro reconciliar sono & sossego com conhecimento & desprezo. É um caso português, não estrangeiro – o que só (m)o piora.
Não sair de casa custa-me mais por não andar dando cibo a pombas & pardais pelos públicos chãos da Cidade. Sinto falta da passarada livre. Dou-me, pois, a outras ornitologias. Record’invento coisas, lances, nomes, martírios por vezes dulcíssimos - & afins oxímoros. Nada espero – sobretudo o que é certo vir. Calo-me mais sabiamente, julgo. Assisto àquele concurso-TV de doze perguntas para 50 mil euros, acerto algumas respostas, outras escapam-se-me sem remédio nem doença. Acontece-me pensar em segmentos temporais determinados. Exemplo: 1994-2005. Outros são mais restritos: Outono de 1998, Verão de 1999, Julho de 1970, Agosto de 1976, Novembro de 1977, 25 de Dezembro de 1981. Ou hoje, entre as 16 & as 17 horas, a trovoada ríspida, efémera, avoenga à nascença por me recordar um Avô, figura que, afinal, me faz menos falta do que pardais & pombas por estes dias sem parte-de-fora da porta-da-casa.
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