08/09/2020

VinteVinte - 46 (I)


 

© Christian Boltanski



46. MUITO ANO

Coimbra, quinta-feira, 7 de Maio de 2020


I

 

Com 23 anos de intervalo, travei conhecimento com duas pessoas coincidentes na confessa atracção por elas sentida quanto a enredos perversos: na literatura como na pintura, no cinema como na vida dita real. Eram pessoas jovens, normalíssimas, nada as destacava, pela negativa, da ordinária norma do social-humano. Achavam a pimenta açúcar, ponhamos assim as coisas. Falou-me uma de certo filme com o (grande) actor Tim Roth. Contou-me outra de certa passagem – salvo erro de Sartre – que metia uma bebida verde e uma punhalada auto-infligida na mão da personagem. Não recordo os títulos, nem o da película nem o do romance.

Dias juntaram & dispersaram décadas. Recordei-as a ambas no decurso de um destes sonhos outonais que desde menino me povoam o estado hipnótico natural. Tenho sonhado mais, ultimamente. Não são pesadelos. Não são festas. Comparo-os a peças de louça que, mesmo quebradas, continuam a servir o & para o propósito prático para que foram criadas. Desconheço tal propósito – assim como, como toda a gente, mais é que ignoro do que o já-aprendido.

Felizmente, esqueço depressa tais desarrazoados. Não lhes reconheço magia, encantamento, poder de premonição, treta nenhuma de supersticiosos a quem falta um bocadito de António Damásio, por exemplo.

Desperto contente quando parece que nada sonhei. Um sono profundo, oceânico em terra firme, por assim dizer, é uma bênção. A coisa não tem sido assim, todavia. Acho que há coisas de duas ou três semanas (talvez décadas, isto co’a idade tende a emaranhar-se) sonhei com um anjo sem asas (mas anjo mesmo, por ser pelos olhos que falava & por não ter boca humana) que vivia numa casa pintada de (talvez) verde-musgo por fora & de (talvez) roxo estriado a dourado por dentro – sei disto porque entrei no tugúrio dele. O anjo era casado & pai, mas nem mulher nem filhos estavam de momento ali. Ofereceu-me de beber uma espécie de água iluminada por dentro como o olhar dos gatos. Sabia a funcho, era agradável como, digamos, levar a manhã à boca. Era depois aquela bebida verde do homem que cravava uma lâmina na própria palma. Não tive medo, apesar de saber que o real de uma conversa real conseguira imiscuir-se no sonho, o que quase sempre dá para o torto. Não deu. O anjo-marido-pai contava-me coisas do Céu, onde, por modos, exercia uma função assaz subalterna. Não tive a curiosidade de lhe perguntar por Deus, nem pelos meus Pais, nem pelos meus dois Irmãos já defuntos também. Mas, é engraçado, quis saber do meu Cão Amarelo daqueles anos que antecederam a minha Leonor. Ele não me respondeu porque já lá não estavam nem ele nem a casa. O cenário passara a ser uma espécie de areal que seria azul se houvesse cores nos sonhos. Estava crivado de andorinhas adormecidas. Não mortas – adormecidas, disso eu estava seguro. Pus-me a contá-las mas tinha de recorrer a letras como as das cópias-caligrafia da escola-primária, os números não sido inventados, eu fazia pois de romano.

E agora que recordo isto, sei que não é isto que recordo – mas sim tão-só o que escrevo, embora, quando fresco, o funcho seja deveras verde, sem talvez nem coiso.




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Canzoada Assaltante