© Christian Boltanski
46. MUITO ANO
Coimbra, quinta-feira, 7 de Maio de 2020
I
Com 23 anos de intervalo, travei conhecimento com duas
pessoas coincidentes na confessa atracção por elas sentida quanto a enredos
perversos: na literatura como na pintura, no cinema como na vida dita real.
Eram pessoas jovens, normalíssimas, nada as destacava, pela negativa, da
ordinária norma do social-humano. Achavam a pimenta açúcar, ponhamos assim as
coisas. Falou-me uma de certo filme com o (grande) actor Tim Roth. Contou-me outra
de certa passagem – salvo erro de Sartre – que metia uma bebida verde e uma
punhalada auto-infligida na mão da personagem. Não recordo os títulos, nem o da
película nem o do romance.
Dias juntaram & dispersaram décadas. Recordei-as a
ambas no decurso de um destes sonhos outonais que desde menino me povoam o
estado hipnótico natural. Tenho sonhado mais, ultimamente. Não são pesadelos.
Não são festas. Comparo-os a peças de louça que, mesmo quebradas, continuam a
servir o & para o propósito prático para que foram criadas. Desconheço tal
propósito – assim como, como toda a gente, mais é que ignoro do que o
já-aprendido.
Felizmente, esqueço depressa tais desarrazoados. Não
lhes reconheço magia, encantamento, poder de premonição, treta nenhuma de
supersticiosos a quem falta um bocadito de António Damásio, por exemplo.
Desperto contente quando parece que nada sonhei. Um
sono profundo, oceânico em terra firme, por assim dizer, é uma bênção. A coisa
não tem sido assim, todavia. Acho que há coisas de duas ou três semanas (talvez
décadas, isto co’a idade tende a emaranhar-se) sonhei com um anjo sem
asas (mas anjo mesmo, por ser pelos olhos que falava & por não ter boca
humana) que vivia numa casa pintada de (talvez) verde-musgo por fora & de (talvez)
roxo estriado a dourado por dentro – sei disto porque entrei no tugúrio dele. O
anjo era casado & pai, mas nem mulher nem filhos estavam de momento ali.
Ofereceu-me de beber uma espécie de água iluminada por dentro como o olhar dos
gatos. Sabia a funcho, era agradável como, digamos, levar a manhã à boca. Era
depois aquela bebida verde do homem que cravava uma lâmina na própria palma.
Não tive medo, apesar de saber que o real de uma conversa real conseguira
imiscuir-se no sonho, o que quase sempre dá para o torto. Não deu. O
anjo-marido-pai contava-me coisas do Céu, onde, por modos, exercia uma função
assaz subalterna. Não tive a curiosidade de lhe perguntar por Deus, nem pelos
meus Pais, nem pelos meus dois Irmãos já defuntos também. Mas, é engraçado,
quis saber do meu Cão Amarelo daqueles anos que antecederam a minha Leonor. Ele
não me respondeu porque já lá não estavam nem ele nem a casa. O cenário passara
a ser uma espécie de areal que seria azul se houvesse cores nos sonhos. Estava
crivado de andorinhas adormecidas. Não mortas – adormecidas, disso eu estava
seguro. Pus-me a contá-las mas tinha de recorrer a letras como as das
cópias-caligrafia da escola-primária, os números não sido inventados, eu fazia
pois de romano.
E agora que recordo isto, sei que não é isto que recordo
– mas sim tão-só o que escrevo, embora, quando fresco, o funcho seja deveras
verde, sem talvez nem coiso.
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