21/09/2020

VinteVinte - 56 (I a VI)


 Rabbits (David Lynch)



56.

 

NÚMEROS, ÊXTASES, LIXOS etc.

 

Coimbra, sábado, 16 de Maio de 2020

 

I

 

Números oficiais do dia: 1203 mortos, 28810 infectados. A partir de segunda-feira  próxima, 18, a palavra-de-ordem é desconfinamento. Restaurantes, lojas, fábricas etc. Escolas. Oficinas. Normalidade da anormalidade. Planeta saturado de autoantropofagia. Aproveitar isto fingindo que isto não é rápido, nem à bruta. Fruir a orquestra. Devassar a floresta. Levar a máscara artificial à máscara com que se nasce: espécie contemporânea da persona greg’antiga.

 

II

 

Semana que vem, sairei eu algumas horas deste meu algodoado cárcere? Sim, decerto. Papéis breves por tratar a balcões vários: correios, banco, serviços municipalizados. Tomar um café não-caseiro. Fumar à libertado por essas ruas. Sítios sem televisor, por favor. Luz. Ar. Coimbra. Pombas & Pardais. Casa do Sal. Bota Abaixo. Jardim da Manga. Botânico. Calhabé. Casa Branca. Cosmos.

 

III

 

Alcoolismo. Negligência médica. Indigência económica. Escassez de raciocínio. Sentido à esquerda obrigatório. Paragem só permitida a cargas & descargas. Batas cor-de-mar-calmo. Reparação financeira. Indemnização por viuvez voluntária. Prateleira de alimentícios. Frasco que foi de compota agora mealheiro de moedas de um & dois euros. O macaco na morgue. Psicopata de férias em Tavira. Comércio de artigos de iluminação. Sortido de bolachas frutadas. Tónico-vinho-de-carne. Dentífricos mentolados. Vagas de calor mortífero inquietando até os enterrados. Hidroterapia para abastados em licença termal. Fonética islandesa de expiração condensada à nascença. Sordidez portuguesa. Sordidez brasileira. Mas a colecção de vias-de-resgate. Mas os êxtases calmos, crepusculares, viscerais. Crestomatias abarcando séculos com pessoas dentro como jóias encastoando veludo. Naquela manhã universitária, a fruição dos versos tão dizíveis do Prévert. Os institutos forrados a madeira perfumada de primeiras-edições tão valiosas quão tranças de avó guardadas em papel-de-seda no imo de caixas-camiseiras.

 

IV

 

Nem de propósito: pelas quatro da tarde, telefonema do meu já há muitos anos bom Amigo chamado João Pedro Vaz Domingues, filho terceiro & derradeiro dos finados Lino & Ana Rosa, do Louriçal. Boa gente de meus antigos mundos (& fundos). A conversação prepara reencontro nosso para sábado próximo, 23. A ver se lá chegamos.

 

V

 

Nefando rosto, o de certo homem que vejo em filme-documentário estrangeiro. O corpo é de vivo – mas o olhar é de morto. Expressão cadaverosa, malevolente, de ingente corrupção. Ei-lo que fala: palavras plúmbeas, pesadas do miligrama à tonelada. Nem ele acha inverosímil a mentira de que é fragrante o seu olhar de defunto respiratório. E o nome dele faz legião, além de sê-lo.

 

VI

 

Ruas sujas por as que floresce o lixo radicado no factor-humano. É uma sujidade que começa por ser imanente. Difícil, muito precário, chamar civilização a tal global lixeira. Hordas infestam a defunta serenidade d’outrora. Menos são os insectos do que os delinquentes. Mau filme. Vileza & vilipêndio. Maus-da-fita, odres-ogres-podres. Cachuchos de ouro asfixiando dedões culminados de unhacas estercóides. Banditismo de colarinho-branco. Recorrente reclamação dos substantivos honra & respeito. Mafiosidade até ao genoma. Pergunta crucial: como para-viver com a autoritária constância de tais lixos? Ele há resposta(s).


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Canzoada Assaltante