56.
NÚMEROS, ÊXTASES, LIXOS etc.
Coimbra, sábado, 16
de Maio de 2020
I
Números
oficiais do dia: 1203 mortos, 28810 infectados. A partir de segunda-feira próxima, 18, a palavra-de-ordem é desconfinamento.
Restaurantes, lojas, fábricas etc. Escolas. Oficinas. Normalidade da
anormalidade. Planeta saturado de autoantropofagia. Aproveitar isto fingindo
que isto não é rápido, nem à bruta. Fruir a orquestra. Devassar a floresta.
Levar a máscara artificial à máscara com que se nasce: espécie contemporânea da
persona greg’antiga.
II
Semana
que vem, sairei eu algumas horas deste meu algodoado cárcere? Sim, decerto.
Papéis breves por tratar a balcões vários: correios, banco, serviços
municipalizados. Tomar um café não-caseiro. Fumar à libertado por essas ruas.
Sítios sem televisor, por favor. Luz. Ar. Coimbra. Pombas & Pardais. Casa
do Sal. Bota Abaixo. Jardim da Manga. Botânico. Calhabé. Casa Branca. Cosmos.
III
Alcoolismo.
Negligência médica. Indigência económica. Escassez de raciocínio. Sentido à
esquerda obrigatório. Paragem só permitida a cargas & descargas. Batas
cor-de-mar-calmo. Reparação financeira. Indemnização por viuvez voluntária.
Prateleira de alimentícios. Frasco que foi de compota agora mealheiro de moedas
de um & dois euros. O macaco na morgue. Psicopata de férias em Tavira.
Comércio de artigos de iluminação. Sortido de bolachas frutadas.
Tónico-vinho-de-carne. Dentífricos mentolados. Vagas de calor mortífero
inquietando até os enterrados. Hidroterapia para abastados em licença termal.
Fonética islandesa de expiração condensada à nascença. Sordidez portuguesa.
Sordidez brasileira. Mas a colecção de vias-de-resgate. Mas os êxtases calmos,
crepusculares, viscerais. Crestomatias abarcando séculos com pessoas dentro
como jóias encastoando veludo. Naquela manhã universitária, a fruição dos
versos tão dizíveis do Prévert. Os institutos forrados a madeira perfumada de
primeiras-edições tão valiosas quão tranças de avó guardadas em papel-de-seda
no imo de caixas-camiseiras.
IV
Nem
de propósito: pelas quatro da tarde, telefonema do meu já há muitos anos bom
Amigo chamado João Pedro Vaz Domingues, filho terceiro & derradeiro dos
finados Lino & Ana Rosa, do Louriçal. Boa gente de meus antigos mundos
(& fundos). A conversação prepara reencontro nosso para sábado próximo, 23.
A ver se lá chegamos.
V
Nefando
rosto, o de certo homem que vejo em filme-documentário estrangeiro. O corpo é
de vivo – mas o olhar é de morto. Expressão cadaverosa, malevolente, de ingente
corrupção. Ei-lo que fala: palavras plúmbeas, pesadas do miligrama à tonelada.
Nem ele acha inverosímil a mentira de que é fragrante o seu olhar de defunto
respiratório. E o nome dele faz legião, além de sê-lo.
VI
Ruas
sujas por as que floresce o lixo radicado no factor-humano. É uma sujidade que
começa por ser imanente. Difícil, muito precário, chamar civilização a
tal global lixeira. Hordas infestam a defunta serenidade d’outrora. Menos são os
insectos do que os delinquentes. Mau filme. Vileza & vilipêndio. Maus-da-fita,
odres-ogres-podres. Cachuchos de ouro asfixiando dedões culminados de unhacas
estercóides. Banditismo de colarinho-branco. Recorrente reclamação dos substantivos
honra & respeito. Mafiosidade até ao genoma. Pergunta crucial:
como para-viver com a autoritária constância de tais lixos? Ele há resposta(s).
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