12/09/2020

VinteVinte - 49 (integral)




49.

 

FAZER (P)ARTE

 

Coimbra, domingo, 10 de Maio de 2020

 


    I 

    Foi encontrada morta a menina que há uns poucos dias desaparecera durante a noite da casa de seu pai & madrasta. Tinha nove anos e chamava-se Valentina. Atouguia da Baleia, Peniche. Acaba de ser detectada a poucos quilómetros, noutra freguesia, lá para a Serra d’El-Rei. As buscas tinham dado nada até agora. 
    É um festim necrofágico-televisivo. Dois detidos de momento. Os detidos de momento são o pai de Valentina & a segunda mulher dele. A mãe natural vive no Bombarral. O primeiro sinal do desaparecimento fôra dado na manhã de quinta-feira, 7 do corrente. O resto é o costume: pais naturais separados, guarda-partilhada. Cordeiro pós-pascal. 

    II 

    Valentina asfixiada, levada para eucaliptal a cinco km., escondida à pressa sob vegetação rasteira. Pai & madrasta engaiolados, preventivamente por ora. Intervalo macabro no frenesi noticioso do COVID-19. Judiciária em directo adianta detalhes frios. The show must go on, claro – excepto para a defunta infanta, claro. 

    III 

    Da janela, abertos os longes – não o sentido deles. É-se próximo pela atenção lúcida. Sempre se estreia algo, algo se volatiliza, ganha asas, transparente voa para-até-desde nunca-mais. 

    (IV) 

    (Glória à respiração em luz plena, enquanto.) 

    [V] 

    [Obsidiana. Ametista. Celestina. Pirite. Condrito (meteorito). Minérios são. Fazem parte de um diálogo entre personagens de uma história filmada cujo título não recordo. Esperai: “Clara”, acho que é “Clara” o nome da película (e da personagem que mostra a sua colecção portátil de calhauzinhos exóticos ao outro protagonista do enredo). Gosto das palavras que ela diz. Anoto-as porque sim, é razão q.b.] 

    VI 

    Rol palavroso alinhavado tendo por fonte a máquina-de-fantasmas: 

    Consternação / Preocupação / Fragilidade / Ligação 
    Descoberta / Especialidade / Moderação / Trabalho 
    Verão / Autoridades / Transportes / Directivas 
    Futebol / Vacina / Retoma / Lições 
    Adiamento / Linhas-Vermelhas / Saúde / República 
    Estrutura / Guimarães / Conta / Parecer 
    Protocolo / Conduta / Maio / Rocha 
    Teste / Solicitação / Humorismo / Estudo 
    Persistência / Tipos / Regresso / Afastamento 
    Alimentação / Campanha / Taxas / Avaliação 

    As possibilidades combinatórias garantem riqueza expressiva. Os elementos abundam infinitamente – como na Natureza de que, aliás, fazem parte constante. Muitas vezes são festa. Tristeza também, outras. Tudo faz (p)arte. 

    VII 

    Madame la Nuit est en train d’arriver
    novidade não traz peculiar a si colada, 
    aguardo-a cá fora, que lá dentro me guarda. 

    VIII 

    Recordo: 

    Vozes sem corpo visível ressumbrando nos pátios vizinhos anoitecidos como, d’então, o meu. 
    Onde agora essas já-não-vozes? 
    Que farei deste silêncio agora estrangeiro? 

    IX 

    Essa pessoa que chega a casa, vejo-a daqui. Reordena o tempo de seus objectos. Ninguém a espera, nem ela por alguém é pessoa para se pôr esperando. Hora & meia depois, sai, leva dois sacos plásticos carregados de desperdícios, excessos, matéria cujo sentido, se alguma vez o houve, ora perdeu. Aloja-os no contentor. Acende um cigarro. Senta-se nos degraus fronteiros do prédio, fuma em silêncio como acontece à árvore quando espera que vente. Há muito se recolheram as aves. Cordão luzeiro traça sobre o veludo da noite a jóia-de-imitação de cada bairro. Santa Clara? Celas? Tovim? São Martinho do Bispo? Cidreira? Canadá? Vejo-a daqui reentrando em si feita casa. Falará ela durante o sono? Contará com maravilhas amanhã? Já se deita, do próprio nome se perde já.


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Canzoada Assaltante