59.
MARQUISE DE LOWRY etc.
Coimbra, terça-feira,
19 de Maio de 2020
I
Faltam
seis minutos para as cinco, o sono não veio, o Gato sim, adormeceu a horas, vim
para a cozinha para que o não perturbem nem a literatura nem a inutilidade da
literatura.
É
quase gratificante sentir-se uma pessoa ninguém, a esta hora, através do néon
da cozinha, lá fora o nada de tudo, um camião de vez em quando mas nem o rumor
desse pesado diligente aqui chega, ao planalto chegam as estrelas e mesmo assim
nem todas, dizem que algumas estavam tão longe daqui, mas tão, que a luz delas,
mesmo a tantos milheiros de quilómetros por fracção de segundo, só cá chega
quando as engoliu já, e há muito, o buraco-negro-mais-próximo-de-si. (De
si/delas, cidadelas.)
II
Ocorreu-me
ontem, de repente, o enredo mexicano de Debaixo do Vulcão, por isso me
referi ao grande Malcolm Lowry. Já percebi que vou relê-lo em breve. A primeira
vez que o nome dele (dele, Autor) me surgiu, sei bem qual: foi naquele poema do
Carlos de Oliveira. Ainda bem que não perdi o Trabalho Poético deste na
adolescência: marca indelével no meu, por assim chamar-lhe, crescimento. Só anos
depois cheguei ao Malcolm Lowry propriamente dito. Ainda bem também. Tenho a
certeza de que a anunciada releitura daquele seu opus Magnum me não decepcionará
– de modo algum, bem antes pelo contrário.
III
Como
sempre, o galo canta às 5 & 13 da madrugada. Sabia-o – e confirmou-o comigo
– o saudoso & gentil senhor Sacramento da minha Rua Inicial &
Derradeira. Escuto a masculina, relojoeira ave – e intimamente saúdo in
memoriam esse senhor operário que o cancro roeu cedo de mais. Em caso de
senilidade extrema, que venha o cancro, enfim. Mas o senhor Sacramento merecia
mais anos. Era um cavalheiro correcto, de humildade não-estudada. Rareando-lhe,
passou a pentear a melena de orelha a orelha, o que fazia dele o humberto-delgado
da nossa Rua. Depois lá se conformou com a luna ovóide da calvície. Tenho saudades
dele – e saudades de ser moço ao pé dele, e ao pé dos senhores Manuel, Elói,
Carvalho, Ribeiro, Nunes, Gonçalves, Pimentel, Duarte, ui, tantos bilhetes-só-de-ida.
Mas o galo, pontual, etc.
IV
Mas,
dizia, Lowry. Sim, ando sobretudo relendo. Quero ver como é aos 56 anos o que
me pareceu aos 15, aos 22, aos 36, aos 49. É como ser outro gajo. Ou como uma
segunda (nalguns casos, terceira) oportunidade. Olhai, ó Adormecidos: já vai
rai’clare’ando o dilúculo. É sempre tão bonito, o raio (do) nascente! Já há orfeão
de galos de díspares capoeiras. Menos tensos os lampiões públicos. Da outra
banda, já esta que aqueloutra marquise se ilumina. Ainda não é azul nem
ex-preto: é um quási-anil um nadinha purpúreo com uma demãozada de cinza que não
tarda é poalha-d’oiro. Ga-Lo-wry. Malcolmanhecer. Etc.
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