23/09/2020

VinteVinte - 59 (I a IV)


59.

 

MARQUISE DE LOWRY etc.

 

Coimbra, terça-feira, 19 de Maio de 2020

 

I

 

Faltam seis minutos para as cinco, o sono não veio, o Gato sim, adormeceu a horas, vim para a cozinha para que o não perturbem nem a literatura nem a inutilidade da literatura.

É quase gratificante sentir-se uma pessoa ninguém, a esta hora, através do néon da cozinha, lá fora o nada de tudo, um camião de vez em quando mas nem o rumor desse pesado diligente aqui chega, ao planalto chegam as estrelas e mesmo assim nem todas, dizem que algumas estavam tão longe daqui, mas tão, que a luz delas, mesmo a tantos milheiros de quilómetros por fracção de segundo, só cá chega quando as engoliu já, e há muito, o buraco-negro-mais-próximo-de-si. (De si/delas, cidadelas.)

 

II

 

Ocorreu-me ontem, de repente, o enredo mexicano de Debaixo do Vulcão, por isso me referi ao grande Malcolm Lowry. Já percebi que vou relê-lo em breve. A primeira vez que o nome dele (dele, Autor) me surgiu, sei bem qual: foi naquele poema do Carlos de Oliveira. Ainda bem que não perdi o Trabalho Poético deste na adolescência: marca indelével no meu, por assim chamar-lhe, crescimento. Só anos depois cheguei ao Malcolm Lowry propriamente dito. Ainda bem também. Tenho a certeza de que a anunciada releitura daquele seu opus Magnum me não decepcionará – de modo algum, bem antes pelo contrário.

 

III

 

Como sempre, o galo canta às 5 & 13 da madrugada. Sabia-o – e confirmou-o comigo – o saudoso & gentil senhor Sacramento da minha Rua Inicial & Derradeira. Escuto a masculina, relojoeira ave – e intimamente saúdo in memoriam esse senhor operário que o cancro roeu cedo de mais. Em caso de senilidade extrema, que venha o cancro, enfim. Mas o senhor Sacramento merecia mais anos. Era um cavalheiro correcto, de humildade não-estudada. Rareando-lhe, passou a pentear a melena de orelha a orelha, o que fazia dele o humberto-delgado da nossa Rua. Depois lá se conformou com a luna ovóide da calvície. Tenho saudades dele – e saudades de ser moço ao pé dele, e ao pé dos senhores Manuel, Elói, Carvalho, Ribeiro, Nunes, Gonçalves, Pimentel, Duarte, ui, tantos bilhetes-só-de-ida. Mas o galo, pontual, etc.

 

IV

 

Mas, dizia, Lowry. Sim, ando sobretudo relendo. Quero ver como é aos 56 anos o que me pareceu aos 15, aos 22, aos 36, aos 49. É como ser outro gajo. Ou como uma segunda (nalguns casos, terceira) oportunidade. Olhai, ó Adormecidos: já vai rai’clare’ando o dilúculo. É sempre tão bonito, o raio (do) nascente! Já há orfeão de galos de díspares capoeiras. Menos tensos os lampiões públicos. Da outra banda, já esta que aqueloutra marquise se ilumina. Ainda não é azul nem ex-preto: é um quási-anil um nadinha purpúreo com uma demãozada de cinza que não tarda é poalha-d’oiro. Ga-Lo-wry. Malcolmanhecer. Etc. 

 

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Canzoada Assaltante