53.
ALGUMA ARTE EPISTOLAR
EM MONTRA PRÁTICA
Coimbra,
quinta-feira, 14 de Maio de 2020
III
Em
postal imaginado, fixo os poucos metros que levam do jardim-parque à fita já
azul do estuário. Damas enchapeladas tipo Lisbonne-à-la-Paris passeiam devagar
com escolta de caniche & criada. Cavalheiros-cartolas de artol’aburguesada
fidalguia refrescam o palato enxuto do charuto com grandes balões de conhaque
aquecido. Irmãs-da-caridade adejam como mariposas velocíssimas por as esquinas
que Deus jamais perde de vista. Já lá vai, graças a Ele, a influenza-espanhola
que só pode ter sido Ele mesmo a soprar, aliás. O postal resiste, todavia,
a blasfémias. Estou em plena re-visão de clarões instantâneos, chispas talvez
do ócio confinado & da imaginação desbraguilhada que resulta do & no
vício dos versos. Não deixa de ser bonito, o conjunto: caleche, orchata,
dispepsia, taful léxico d’antanho que esburgo em transe tranquilo. E agora isto
assim:
Em
vez de postal imaginado, encontrei na caixa-postal, em material &
substantiva realidade, três cartas. Não foi o carteiro a trazê-las: não vêm
estampilhadas nem carimbadas. Senhoras diferentes com objectivo comum as
assinam. Vereis, ou lereis, que são textos delicados, suaves, pertinentes até
talvez. E atenção: manuscritos, não fotocopiados.
A
PRIMEIRA
(Endereço
completo do remetente)
“Ex.ma
(Senhora)…
Eu
moro nos arredores de X. Visto que não consegui falar consigo pessoalmente,
gostaria de lhe transmitir uma mensagem importante por meio desta carta.
O
folheto anexado contém parte dessa mensagem. Tanto eu como outras pessoas temos
o prazer de participar voluntariamente em mais de 235 países, sem fins
comerciais ou lucrativos.
O
nosso objectivo é ajudar as pessoas a obterem respostas práticas e verdadeiras
a perguntas que muitas vezes faremos a nós próprios.
Perguntas
tais como:
«Porquê
tanta maldade?»
«Quem
realmente governa o mundo?»
Participo
nesta obra educativa porque estou realmente interessada nas pessoas.
Sinta-se
à vontade para entrar em contacto connosco no endereço acima transcrito.
Atenciosamente,
Y.Z.”
A
SEGUNDA
(Endereço
completo do remetente)
“Prezado
morador:
Visto
que não foi possível falhar-lhe (sic)
pessoalmente, venho por este meio trazer-lhe uma informação importante.
Acha
que é possível ainda vivermos algum dia sem doença, velhice, ou até mesmo
morte, nesta mesma terra? Para muitos é impossível, mas note estas palavras
antigas: «E enxugará dos seus olhos toda a
lágrima, e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem clamor, nem dor.
As coisas anteriores já passaram… E eis que faço novas todas as coisas… Escreve
porque estas são palavras fiéis e verdadeiras…» Revelação 21:4-5. «E nenhum
residente dirá, estou doente. O povo que mora nesta terra são os a quem se
perdoa o erro»… Isaías 33:24.
Há
esperança de que muito em breve o nosso Criador irá mudar completamente o cenário mundial para um mundo melhor, a
verdadeira vida, conforme prometeu á (sic) muito.
Quem
irá viver nestas maravilhosas condições? Temos muito gosto em ajudar a ter mais
conhecimento do preposito (sic)
de Deus para a nossa maravilhosa terra.
Sinta-se
à vontade para contactar-nos. Em breve voltaremos para falar-lhe pessoalmente.
Atenciosamente:
W.K.”
A
TERCEIRA
(Mesmo
endereço & da mesma W.K.)
“Prezado
morador:
Visto
que não foi possível falar-lhe pessoalmente, eu vim por meio desta carta
trazer-lhe uma informação importante. Acha que Deus realmente se importa
connosco?
Vivemos
num mundo cheio de crueldade e injustiça, o que leva muitas pessoas a se
questionarem sobre este assunto. Também muitas religiões ensinam que o nosso
sofrimento é da vontade de Deus.
Mas
o que realmente a Bíblia ensina? Deus nunca causa a maldade. «Longe está do verdadeiro Deus agir iniquamente, e do
todo-poderoso (sic) agir injustamente»… diz Jó (sic) 34:10.
Deus
tem um propósito amoroso para os humanos. É por isso que Jesus nos ensinou a
orar: «Nosso Pai nos céus… venha o teu
reino. Realize-se a tua vontade, como no céu, assim também na terra.» Mateus,
6:9,10.
Deus
se importa tanto connosco que não mediu esforços para garantir o cumprimento de
seu propósito. «Porque Deus amou tanto o mundo,
que deu o seu filho unigénito, a fim de que todo aquele que nele exercer fé não
seja destruído, mas tenha vida eterna»… João 3:16. Isso suscita então outra
questão pertinente: «Porque Deus tem permitido o sofrimento?» Gostaríamos
muito de o poder ajudar a entender e ter mais conhecimento exacto sobre o que
realmente a Bíblia ensina.
Sinta-se
à vontade para entrar em contacto connosco no endereço acima.
Atenciosamente:
W.K.”
As
cartas acima transcritas quase me comoveram. Sei quem me as pôs no correio.
Vira-as numa rua que em piores anos habitei. (Não, não são de hoje. São
verdadeiras – excepto nas abreviaturas onomásticas, que por respeito inventei –
mas chegaram-me às mãos há tempos, outros em que ainda não era minha esta
casa.) Reencontrei-as hoje num caderno mais ou menos recente. Manuscrevi-as, em
cópia leal, tal como me chegaram às mãos. Quase me comoveram – disse.
Sim, a sério. Eram duas senhoras que, a par, tocavam campainhas. À falta de
atendimento, entregavam as cartas pelas ranhuras das caixas-postais. Recordo-as
bem: uma deveria ser da minha idade – velha, portanto; a outra, novinha: talvez
de idade intermédia às das minhas Filhas – na primeira metade de seus vintes. Por
ali andavam, ao sol inclemente como ao chuvisco provisoriamente perpétuo de tardes
& manhãs inumeráveis (mas que Deus numerará, contando com elas).
Tal
como elas, é também a livros que me amparo. A diferença é elas só terem um (ou
Um) por verdadeiro. Somos de diferentes cristianismos, elas & eu. O delas é
mais seguro, mais antigo, mais documentado – e muito menos incerto. O meu é
falível, titubeante, raquítico – e muito mais decassilábico. Mas esta é a menor
diversidade. Há uma bem maior: Deus. Elas têm Um; a mim, Nenhum me tem. Vivamos
(por enquanto), bebamos (se houvermos) & amemos – mas nunca por mais de 20
euritos.
IV
Rematei
o capítulo anterior com alguma leviandade, verdade seja dita. Talvez o meu
agnosticismo seja débil disfarce de inveja – inveja daqueles que se amparam à
sobrenaturalidade, à ânsia de explicar o inexplicável (& inexplicado) desta
merda toda chamada Vida. Talvez sim. Talvez não. Acho que, brilhantes bestas
embora, bestas somos. O corpo, insuficiente como é, não basta. O real é frio. As
estrelas nada têm de antropomorfismo. Adorar bonecos é aceitável na infância mimética
– mas nas procissões parece-me carnavalesco, pueril sem a desculpa da
infantilidade. O Deus Católico tem uma Mãe que é Virgem e usa coroa de ouro
quando visita pastorinhos rudes como a pedra-pomes. O Deus Muçulmano & o
Deus Hebreu andam há milénios a fazer de Tu-Abel-agora-depois-Caim. O Deus dos
Vegetarianos é a Couve. O dos patuscos Budistas apanha nirvanas com
aguardente-de-arroz, sendo por isso o que eu talvez subscrevesse em caso de
muit’aflição – o que m’ainda não é o caso.
E
sobretudo: que Música teria nascido de Bach se este não tivesse a Igreja por
patroa obrigatória? Que teria pintado, no mesmo caso, Michelangelo?
Basta
de iconoclastias caseiras, basta. Estas semanas de confinamento doméstico não mudaram
muito, até ora pelo menos, a minha vida – continuo com falta-de-quorum, à
maneira das assembleias-gerais das associações recreativas de província. Não o
lamento nem o mijo contra o vento. Siga.
V
Recolho
visões – mormente verbais, mas não exclusivamente.
As
mais aprazíveis lastram – como me parece natural – um tipo suave de
retroactividade mental. Algumas deste tipo mesclam bem factores
meteorológico-territoriais com alguma constância. Exemplarmente: neve
rutilante, pedras verticais & negras, casas de madeira reforçada a aço,
lenha resinosa, muito pouca gente, alguns animais & abundância das duas
águas, doce & salgada.
As
menos agradáveis não têm todas a ver com a morte. Esta última é, aliás, credora
de menos desconfiança do que a merecida pela vida. Há entre elas rostos conspurcados
pelas próprias bocas & denunciados pelos próprios olhos. Bocados de frases
materializados no ar como fumos fabril-celulósicos. Indecências gestuais cuja
pornografia não é de cariz sexual mas teatral.
Trabalho-as
todas em permanência. Há décadas que dedico o meu tempo quase todo a tal recolecção.
Ainda não consegui uma obra maior feita do que, todas elas, me dão. Tenho, isso
sim, logrado fragmentos ominosos – mas não muitos, nem muito poucos.
1 comentário:
Nenhum céu mini
Vfh9uu jvnb
Bbbhhb
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