14/09/2020

VinteVinte - conclusão da entrada 50 (V a IX)




    V 

    Ivone, mulher de César, discute na praça em maus termos com Gracinda, mulher de Germano. Derredor, a malta amanda-lhes chufas gozonas. Nada de grave. César anda longe, é camionista. O armador deu-lhe frete de electrodomésticos para Tavira. Germano é escrivão de cartório notarial, homem de poucas falas, pratica na clandestinidade versos impublicáveis. 
    Júlio, homem de Fernanda, é protésico-dentário. Fernanda, mulher de Júlio, não gosta de rábulas como as do par Ivone-Gracinda. É discreta, gosta de plantas, não pode ter filhos por ser de maninho útero. Disso não se fala em casa. 
Tudo faz parte – até deixar de fazer. Não tem importância. Nem sentido, claro que não. 

    VI 

    Tenho escutado bem. 
    Na Praça Velha, a rapariguita Isabel dizendo a David, seu colega de carteira no ciclo-preparatório, que ia comprar uma caixa de lápis-de-cera. Escutei-a. David acompanhou-a, eram bons amigos, tinham onze anos. 
    A caminho da Mesura, a fotógrafa Teresa dizendo ao namorado, que era então o Albuquerque músico, que em Julho ninguém a tiraria de passar pelo menos quinze dias seguidos, “sem tirar o cu do selim”, de praia. 
    Sim, escuto muito bem. 
    Américo, o mais velho do senhor Lucas, doido por ciclismo, pedindo à mãe que pedisse ao pai para lhe comprar uma especial-de-corrida-roda-24. 
Lúcio, dono da Sapataria Sãozinha, explicando a Armando que o senhor marechal Carmona foi um Grande Português, “isso ninguém lhe tira”. 
    Outras falas repercutem na madeira da atenção seus nós, seus dedos. Uma: “A pessoa só morre uma vez.” – diz Florentino a Joaquina, sua mulher, a Joaquina que vende ovos tanto a Ivone como a Gracinda, que “o resto é lá co’ elas.” 

    VII 

    Estria-se, já se não estreia, a que foi 
    lisa suave superfície, como a infante pele. 
    Ao espelho não vês um morto, não lhe dói 
    ter nascido, sorte a tua & sorte a dele. 

    VIII 

    Não só as vozes, também rostos me habitam, muitos se fazem um, que à vidraça da marquise olha por mim os outros. 
    Talvez cadernos como este bastem para a despesa que vim ser. Não interrogo nesse sentido, não agora. 

    IX 

    Não sei onde nem como está. Vou juntando fragmentos mínimos. Precária informação, sim. Hoje foi mais difícil. Soube mais um pouco – e não gostei do que soube. (Engraçado: escrevi a tinta os outros números mas este vai a lápis. Sei que é relevante, isto – não sei é indicar-Vos nem o quê nem o porquê dessa relevância.) 
    Sim, hoje foi mais difícil. Não habitei o dia com a habilidade costumeira. Achei-me mais permeável. Lembrei-me de mais coisas do que as que podem ser escritas. Acuso idade – isso é certo. (Exemplo: os quatro versos do texto VII.)

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Canzoada Assaltante