03/09/2020

VinteVinte - 43 (integral)





43.

 

CASA, CABÊÇO, CAMPO,

COELHO, COBRA, CÃES

 

Coimbra, segunda-feira, 4 de Maio de 2020

 

 

 

I

 

Manhã & finimanhã de esquiza meteorologia: chuva, atmosfera de papelão, uma toalha de sol de quando em vez estendida ao tampo (& ao tempo) do mundo. Ontem, caloraça acima dos trinta centígrados. Em casa, estufo a minha derivação interior, às vezes oblíquo-incisiva, amodorrada outras. Não importa. Importa a Música de que é pródiga a máquina que ali tenho, tão generosa. Já vieram Berlioz, Strauss, Ella, o imorredouro Pai-de-Todos agora, ou seja – o mirífico J.S. Bach. Na vidraça, pérolas humildes: as joiitas pluviais que à janela enfeitam. E as notas bem-temperadas-bachianas equivalem-se-lhes. Foi – dicunt Mihi – em 1722 que Johann Sebastian Bach, vivendo então em Köthen, terá dado de si o livro de prelúdios & fugas em todas as 24 chaves (maiores & menores). A colecção é conhecida por Livro Um do Cravo Bem-Temperado (BWV 846-869). Já na tarde prima da Segunda-Feira do Maio Bach revive, causando vivos & feridos na batalha-campal da audição agradecida. E, de momento, nem sol aberto nem cerrada plúvia. Mas Claude Debussy sim, primo-rapsodiando clarinete & piano. Ao sopro, o senhor Henk de Graaf; ao teclado, o senhor Daniël Wayenberg. Estamos bem. Em calma vamos sem arredar pé, só mão(s). Havendo tempo, apurar algo, se possível, do que se passou (ou não) entre o compositor Hector Berlioz & a actriz, que disseram “bela”, Harriet Smithson. Há futuro para esse (trans)acto.

 

II

 

Um muro encarnado em contrafundo. Dois homens em lenta passagem silhuetando esse muro. Vão conversando brandamente, não logro daqui escutar-lhes o fraseado, o rumor só das glotes me chega. Isto é no passado – mas os versos podem luzir-se presentes.

Está no Observador (pág.ª 286) de Mestre Nemésio:

 

“Ninguém consegue tornar-se cidadão sem cruzar muitas vezes os seus semelhantes na terra que escolheu ou lhe coube para morrer (…)”

 

Verdade. Tenho bastas vezes visto estes homens. A par ou a sós. Ao alto da Alexandre Herculano. Na dos Combatentes. Na ínfima António Duarte. Na do Padrão. Interessa revelá-los mortos há muitos anos? Um é Guilherme Pais, elegantíssimo, de formosos olhos. Outro é Manuel Leite, robusto, de atenta mansidão. Guilherme, Manuel – dois mármores verticais, contra encarnado, em rumoroso imperceptível fraseado. “De repente antigos”, como diz Nemésio (op. cit., pág,ª 300) que Pessoa disse.

 

III

 

Vínculos de pura força são ainda fiáveis no que recordo & recorto & até projecto. São coisas muito minhas que me apraz alhear de mim, escrevendo-as.

Recordo:

Chegar a Casa (x), vindo do Monte (xx), cheirando a espargos, funcho, musgo, grilos: aquele coelho, aquela cobra, aqueles cães-de-ninguém mirando o Campo (xxx) como infantes-de-sagres sem amo nem História nem-boa-nem-má-esperança.

Recorto:

O tal coelho, de tão silenciosa furtiva algodoada corrida descendente, fugindo da minha presença – que ele não podia saber anódina, indefesa (mas então indefessa também) ela mesma.

Projecto:

Chegar vivo a manhãs novas, primeiro novas – recordáveis & recortáveis depois, então, agora, ontem, como para sempre.

 

(x) Lameira do Saramago, depois Estrada da Pedrulha, depois & até hoje Rua 1.º de Maio. 119-R/C D.t.º.

(xx) Monte, pedrulhensemente Cabêço e/ou Picôto.

(xxx) do Bolão.

 

IV

 

Duas irmãs.

A primogénita, Irene.

Emirene, a júnior.

Nunca namorei uma ou outra.

Outros o fizeram.

Não por mim.

 

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Canzoada Assaltante