43.
CASA, CABÊÇO, CAMPO,
COELHO, COBRA, CÃES
Coimbra, segunda-feira, 4 de Maio de 2020
I
Manhã & finimanhã de esquiza meteorologia: chuva,
atmosfera de papelão, uma toalha de sol de quando em vez estendida ao tampo
(& ao tempo) do mundo. Ontem, caloraça acima dos trinta centígrados. Em
casa, estufo a minha derivação interior, às vezes oblíquo-incisiva, amodorrada
outras. Não importa. Importa a Música de que é pródiga a máquina que ali tenho,
tão generosa. Já vieram Berlioz, Strauss, Ella, o imorredouro Pai-de-Todos
agora, ou seja – o mirífico J.S. Bach. Na vidraça, pérolas humildes: as joiitas
pluviais que à janela enfeitam. E as notas bem-temperadas-bachianas
equivalem-se-lhes. Foi – dicunt Mihi – em 1722 que Johann Sebastian
Bach, vivendo então em Köthen, terá dado de si o livro de prelúdios & fugas
em todas as 24 chaves (maiores & menores). A colecção é conhecida por Livro
Um do Cravo Bem-Temperado (BWV 846-869). Já na tarde prima da
Segunda-Feira do Maio Bach revive, causando vivos & feridos na
batalha-campal da audição agradecida. E, de momento, nem sol aberto nem cerrada
plúvia. Mas Claude Debussy sim, primo-rapsodiando clarinete & piano. Ao
sopro, o senhor Henk de Graaf; ao teclado, o senhor Daniël Wayenberg. Estamos
bem. Em calma vamos sem arredar pé, só mão(s). Havendo tempo, apurar algo, se
possível, do que se passou (ou não) entre o compositor Hector Berlioz & a
actriz, que disseram “bela”, Harriet Smithson. Há futuro para esse
(trans)acto.
II
Um muro encarnado em contrafundo. Dois homens em lenta
passagem silhuetando esse muro. Vão conversando brandamente, não logro daqui
escutar-lhes o fraseado, o rumor só das glotes me chega. Isto é no passado –
mas os versos podem luzir-se presentes.
Está no Observador (pág.ª 286) de Mestre
Nemésio:
“Ninguém consegue tornar-se cidadão sem cruzar muitas
vezes os seus semelhantes na terra que escolheu ou lhe coube para morrer (…)”
Verdade. Tenho bastas vezes visto estes homens. A par
ou a sós. Ao alto da Alexandre Herculano. Na dos Combatentes. Na ínfima António
Duarte. Na do Padrão. Interessa revelá-los mortos há muitos anos? Um é
Guilherme Pais, elegantíssimo, de formosos olhos. Outro é Manuel Leite,
robusto, de atenta mansidão. Guilherme, Manuel – dois mármores verticais,
contra encarnado, em rumoroso imperceptível fraseado. “De repente antigos”,
como diz Nemésio (op. cit., pág,ª 300) que Pessoa disse.
III
Vínculos de pura força são ainda fiáveis no que recordo
& recorto & até projecto. São coisas muito minhas que me apraz alhear
de mim, escrevendo-as.
Recordo:
Chegar a Casa (x), vindo do Monte (xx), cheirando a espargos, funcho, musgo, grilos: aquele
coelho, aquela cobra, aqueles cães-de-ninguém mirando o Campo (xxx) como
infantes-de-sagres sem amo nem História nem-boa-nem-má-esperança.
Recorto:
O tal coelho, de tão silenciosa furtiva algodoada
corrida descendente, fugindo da minha presença – que ele não podia saber
anódina, indefesa (mas então indefessa também) ela mesma.
Projecto:
Chegar vivo a manhãs novas, primeiro novas –
recordáveis & recortáveis depois, então, agora, ontem, como para sempre.
(x) Lameira do Saramago, depois Estrada da Pedrulha,
depois & até hoje Rua 1.º de Maio. 119-R/C D.t.º.
(xx) Monte, pedrulhensemente Cabêço e/ou Picôto.
(xxx) do Bolão.
IV
Duas irmãs.
A primogénita, Irene.
Emirene, a júnior.
Nunca namorei uma ou outra.
Outros o fizeram.
Não por mim.
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