58.
DO QUE FRANCAMENTE UM TOSTÃO NÃO VALE
Coimbra, segunda-feira,
18 de Maio de 2020
I
Certa
animação das hostes: vão reabrindo comércios & circulação de massas. De
ontem para hoje, treze mortos. O número total oficial é 1231. Há muito que se
fala no mágico jackpot-do-euromilhões. Os infectados & os internados (29209
casos confirmados) fazem outro tipo de aposta. Dos acamados (628 no total), 105
gemem nos cuidados-intensivos. Destes últimos provêm os óbitos de cada dia,
mormente deles. Velhice & pobreza ajudam muito o bichinho-papão primeiro
detectado na China.
A
religião continua, a política continua – e graças-a-deus o futebol há-de
continuar. Os mortos-de-cada-dia também continuam – mas, por assim dizer, na
divisão-de-honra, não já na primeira-liga dos q’inda respiram, digerem, defecam
& disputam lugar no transporte público, quando o ideal seria ir a pé, pelo
próprio pé, a caminho do fim.
Outras
palavras-de-ordem: “consciência cívica” & “distanciamento social”.
Mais violência nos bairros(anti-)sociais contra polícias. Os senhores
presidente da Assembleia da República & primeiro-ministro vão almoçar ao
Alfaia do Bairro Alto, dando o exemplo aos cidadãos que ’inda têm com que ir
comer-fora.
Não
lamento nem comento. Entretenho a vida compaginando-a. Por enquanto, digo. Se
mais dias houver, outras noites pensarei. Não é grave.
II
Primavera-Verão,
tecidos mais leves, mais coloridos.
O
homem da loja já vendeu duas peças.
Há
ainda quem em casa costure os próprios vestidos.
O
pessoal mais positivo à luta pede meças.
Os
falhados do fanatismo futeboleiro
conspurcam
as ruas em anti-sociedade.
É
politicamente-incorrecto dizer à ciganidade
que
ser-como-os-outros pode ser porreiro.
O
dito Real faz gala de ser medonho.
Predomina
a bicharada sem ponta de civismo.
Houvera
deveras Deus, e seria um sonho
descarregar
na maltosa o autoclismo.
Mas
não. Nada disso. Manter a casa fechada.
Um
fio de luz, cortinado entreaberto.
O
próximo bem longe, o longe por perto.
E
na máquina, música; e leitura desatada.
III
Compreendo,
Marília, que, por negativo, me descreias. De facto, não sou esse
homem-arquétipo capaz de agradar até à própria sogra.
Entendo,
Laura, que desdenhes da minha desconfiança quanto aos astros, aos caracóis
zodíacos, às revistas das cabeleireiras.
Sei
bem, Dinamene, que também tu terias em permanência na CMTV o teu
televisor-a-pilhas.
Irrita-te,
Heloísa, que eu saiba teres recebido vinte mil pesos do
pablo-escobar-de-serviço pela imolação do adolescente-sicário teu filho
matador-de-polícias-&-de-heloísas.
Repugno-te,
Isolda, por não abrilhantar o cabelo matinodominicalmente p’ra ir adorar a
sagrad’eucaristia.
Mata-te,
Julieta, e não m’engonhes, que já o Outro, Ophelia, era de outra tabacaria – e
eu vou a outro talho, Maria.
IV
O
México de Malcolm Lowry é sítio que por vezes me surge no quarto, quando no
mundo o sol dardeja feito bandarilheiro. É inevitável que a Grande-Literatura
torne imperioso certo azul de certa tristeza – digo-o assim sem me preocupar se
mensagem-recebida-&-entendida.
Capri/Axel
Munthe, Paris/Docteur Charcot, Monte Carlo/Bond-James-Bond, Santiago do
Cacém/Manuel da Fonseca – também esses onde/quem me algaraviam rumorosamente a
paz do cubículo.
Medellín/Cali/Bogotá,
Bombaim/Setúbal/Calcutá – destinos abordáveis só de chinelos, cafeteira repleta
de fresco, cigarros de tabaco-loiro.
Lá
fora, o V.º mundo é de tão perigosa ligação quão a de ’qui dentro, mortos &
’inda-vivos negoceiam linhas, sentidos, hipóteses novas até que se refaça a
meia-noite.
(V)
(Em
Fevereiro, morreu-me mais um irmão.
Em
Abril, morreu-me mais um Amigo.
Francamente,
não vale um tostão
falardes
ou não de mim ou comigo.)
VI
Uma
das melhores relíquias vivas deste planalto é o bramir do vento. Vento-verbo,
de infinita frase grave. Vem do fundo dos milénios devassando até as gerações
futuras. Se tivera eu de ter um deus, ele à maravilha me serviria de tal. Tem
corpo & não é corpóreo. É pessoal & não lhe importa a gente. Entra nas
minhas páginas quando quer, fá-las revoar como certas bebidas-brancas de rico
teor tóxico. Sou-lhe sempre grato. Certa vez, em Aveiro, disse-o em voz-alta –
já então estava sozinho.
(VII)
(A
par do vento, Bach também é gajo para me servir de divindade. De resto, que
homem poderia criar tal Obra?)
VIII
Ela
era Primavera-Verão.
Ele
foi Outono-Inverno.
Ele,
ensimesmado, triste, terno.
Ela
cria na vida & na humana condição.
Pertenceram-se
em corpo, sombra & luz.
Memória
& exemplo são o que me conduz.
Sem comentários:
Enviar um comentário