23/09/2020

VinteVinte - 58 (integral)


 © Peter Handke - Die Linkshändige Frau 


58.

 

DO QUE FRANCAMENTE UM TOSTÃO NÃO VALE

 

Coimbra, segunda-feira, 18 de Maio de 2020

 

I

 

Certa animação das hostes: vão reabrindo comércios & circulação de massas. De ontem para hoje, treze mortos. O número total oficial é 1231. Há muito que se fala no mágico jackpot-do-euromilhões. Os infectados & os internados (29209 casos confirmados) fazem outro tipo de aposta. Dos acamados (628 no total), 105 gemem nos cuidados-intensivos. Destes últimos provêm os óbitos de cada dia, mormente deles. Velhice & pobreza ajudam muito o bichinho-papão primeiro detectado na China.

A religião continua, a política continua – e graças-a-deus o futebol há-de continuar. Os mortos-de-cada-dia também continuam – mas, por assim dizer, na divisão-de-honra, não já na primeira-liga dos q’inda respiram, digerem, defecam & disputam lugar no transporte público, quando o ideal seria ir a pé, pelo próprio pé, a caminho do fim.

Outras palavras-de-ordem: “consciência cívica” & “distanciamento social”. Mais violência nos bairros(anti-)sociais contra polícias. Os senhores presidente da Assembleia da República & primeiro-ministro vão almoçar ao Alfaia do Bairro Alto, dando o exemplo aos cidadãos que ’inda têm com que ir comer-fora.

Não lamento nem comento. Entretenho a vida compaginando-a. Por enquanto, digo. Se mais dias houver, outras noites pensarei. Não é grave.

 

II

 

Primavera-Verão, tecidos mais leves, mais coloridos.

O homem da loja já vendeu duas peças.

Há ainda quem em casa costure os próprios vestidos.

O pessoal mais positivo à luta pede meças.

 

Os falhados do fanatismo futeboleiro

conspurcam as ruas em anti-sociedade.

É politicamente-incorrecto dizer à ciganidade

que ser-como-os-outros pode ser porreiro.

 

O dito Real faz gala de ser medonho.

Predomina a bicharada sem ponta de civismo.

Houvera deveras Deus, e seria um sonho

descarregar na maltosa o autoclismo.

 

Mas não. Nada disso. Manter a casa fechada.

Um fio de luz, cortinado entreaberto.

O próximo bem longe, o longe por perto.

E na máquina, música; e leitura desatada.

 

III

 

Compreendo, Marília, que, por negativo, me descreias. De facto, não sou esse homem-arquétipo capaz de agradar até à própria sogra.

Entendo, Laura, que desdenhes da minha desconfiança quanto aos astros, aos caracóis zodíacos, às revistas das cabeleireiras.

Sei bem, Dinamene, que também tu terias em permanência na CMTV o teu televisor-a-pilhas.

Irrita-te, Heloísa, que eu saiba teres recebido vinte mil pesos do pablo-escobar-de-serviço pela imolação do adolescente-sicário teu filho matador-de-polícias-&-de-heloísas.

Repugno-te, Isolda, por não abrilhantar o cabelo matinodominicalmente p’ra ir adorar a sagrad’eucaristia.

Mata-te, Julieta, e não m’engonhes, que já o Outro, Ophelia, era de outra tabacaria – e eu vou a outro talho, Maria.

 

IV

                                                           

O México de Malcolm Lowry é sítio que por vezes me surge no quarto, quando no mundo o sol dardeja feito bandarilheiro. É inevitável que a Grande-Literatura torne imperioso certo azul de certa tristeza – digo-o assim sem me preocupar se mensagem-recebida-&-entendida.

Capri/Axel Munthe, Paris/Docteur Charcot, Monte Carlo/Bond-James-Bond, Santiago do Cacém/Manuel da Fonseca – também esses onde/quem me algaraviam rumorosamente a paz do cubículo.

Medellín/Cali/Bogotá, Bombaim/Setúbal/Calcutá – destinos abordáveis só de chinelos, cafeteira repleta de fresco, cigarros de tabaco-loiro.

Lá fora, o V.º mundo é de tão perigosa ligação quão a de ’qui dentro, mortos & ’inda-vivos negoceiam linhas, sentidos, hipóteses novas até que se refaça a meia-noite.

 

(V)

 

(Em Fevereiro, morreu-me mais um irmão.

Em Abril, morreu-me mais um Amigo.

Francamente, não vale um tostão

falardes ou não de mim ou comigo.)

 

VI

 

Uma das melhores relíquias vivas deste planalto é o bramir do vento. Vento-verbo, de infinita frase grave. Vem do fundo dos milénios devassando até as gerações futuras. Se tivera eu de ter um deus, ele à maravilha me serviria de tal. Tem corpo & não é corpóreo. É pessoal & não lhe importa a gente. Entra nas minhas páginas quando quer, fá-las revoar como certas bebidas-brancas de rico teor tóxico. Sou-lhe sempre grato. Certa vez, em Aveiro, disse-o em voz-alta – já então estava sozinho.

 

(VII)

 

(A par do vento, Bach também é gajo para me servir de divindade. De resto, que homem poderia criar tal Obra?)

 

VIII

 

Ela era Primavera-Verão.

Ele foi Outono-Inverno.

Ele, ensimesmado, triste, terno.

Ela cria na vida & na humana condição.

 

Pertenceram-se em corpo, sombra & luz.

Memória & exemplo são o que me conduz.


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Canzoada Assaltante