28/09/2020

VinteVinte - 61 (integral)

Marcos Portugal (1762-1830)


61.

 

PUF, MARCOS; PUF, PORTUGAL

 

Coimbra, quinta-feira, 21 de Maio de 2020

 

I

 

Vida, segmento de recta.

Tortuosa linearidade todavia.

Nascimento remoto, morte certa:

certeza geométrica de cada dia.

 

II

 

Há algo que me faz pertencer a uma maioria:

ter os próprios pés crivados de tiros autodisparados.

  

III

 

De Marcos Portugal, o Requiem (1816).

Dizem que 1869 foi o Ano II da Era Meiji.

1822 é o Ano Brasileiro.

O nevão em Hokkaido é mortalmente belo.

Crianças & avós encanecidas fazem de, sabeis de quê?, de cerej’amendoeiras-em-nívea-flor.

Nenhuma quer morrer, isso é certo.

Estes três fizeram muito mar:

Wenceslau até o Japão;

Pessanha até Macau (onde acolheu Wenceslau);

Pessoa desde Durban ’té Lisbo’-A-Terminal.

Na nipónica Era Meiji, o Ano XIII é o mesmo do nascimento do senhor meu paterAvô: 1880.

Sou sétimo-filho de um quinto-filho: daí que porte comigo tão entranhado & remoto nome.

Muito longe daqui, Sapporo.

Mas não fica tudo daqui muito longe? Sim, fica.

O Wyoming, La Salette, o Menino-Mijão de Bruxelas, Silves-a-Árabe, Matosinhos de boa & barata comida.

Dizeis não poder compreender o fio-lógico deste alinhamento? Quem V. prometeu fio-lógico? Quem V. deu tal corda?

Já o calor vai cingindo o torno. E eu detesto-o, mas que remédio, é cerrar estores & cortinados, fazer disto (ainda mais) caverna – disto: a minha casa, a minha vida.

Mas falávamos de música, não era?

À tarde, escutei Marcos Portugal, compositor de cuja obra o senhor D. João VI gostava – dicunt Mihi. Também acedi a canções de Kate Tempest, Nick Cave (sempre, grande gajo), Alberto Ribeiro & Ronnie James Dio. Ia fazendo, enquanto a música dominava o ar do quarto, troca de referências entre livros, lapijando datas, nomenclaturas, figuras oblíquas, rainhas-d’-inglaterra desse & doutros géneros outrossim.

Nada me fez rebentar – de riso, muito menos.

Nada me fez prantear – de alegria, muito menos.

(Queríeis quê? Fio-lógico? Tomai & mamai todos: a GALP aproveitou a crise-do-coronavírus para despedir 300 trabalhadores, mas agora distribui 580 milhões de euros pelos accionistas. Nada mal, hã?)

Dizia-Vos pois: Marcos Portugal etc.

 

IV

 

Insisto na linha que há já muitos anos me ocorreu sobre o que somos: meros sacos de vísceras apertados em cima por um olhar. Não há dualidade corpo/alma. Inexiste a alma. Não há dicotomia matéria/espírito. Só há matéria. O que acontece a cada eu/me/mim em vinda-a-hora? Puf. É o que lhe acontece: puf. Lavoisier o determinou: nem ganho nem perda, só transformação. Cálcio, carbono, ferro, mãe: puf. Transpufa-se tudo. Mas a linha fica:

Sacos de vísceras apertados em cima por um olhar.

A linha fica porque é certa.

(Desculpe, senhor Novalis; desculpe, senhor Sampaio Bruno – mas está.)


 

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Canzoada Assaltante