15/09/2020

VinteVinte - 52 (integral)


52.

 

NADA DE GRAVE

 

Coimbra, quarta-feira, 13 de Maio de 2020

 

    I 



    Se não única, então uma das poucas coisas que me dana na certeza de morrer é a de, de lá, não poder escrever relatando-Vos como foi a passagem, como está a ser a demora & que projectos para o futuro me permitem ou não acalentar os guardas disfarçados de anjos que me não deixam a sós no catre. (Digo anjos admitindo vermes ou labaredas.) 

    Foi com este vago amargor-de-boca que hoje despertei ao cabo de uma noite dormida de uma só ponte cujos pilares eram menos a paz-de-alma do que a benzodiazepina engolida às três da madrugada. 

    De resto, pronto para o dia igual, ilusão afinal reconfortante & docemente mentirosa com que este pré-sexagenário – se lá chegar – vai entrete(ce)ndo a viagem quieta do quotidiano. 

    II 

    Monstros povoam a História, que queimam 
    – como queimaram, a 10 de Maio de 1933, 
    os livros banidos, assim queimando em efígie 
    os autores deles, mortos ou vivos que fossem. 
    Foi esse o ano em que nasceram Ruy Belo & António Osório. 

    Desconhecer a História é perpetuá-la 
    – alguém mais bem o reiterou antes. 
    Os livros não arderam nem ardem. 
    Goebbels nada pode contra A Ignorância da Morte. 
    Röhm nada opõe ao Transporte no Tempo. 

    Esta verdade não impede a monstruosidade nova. 
    Nova, não – reciclada das cinzas férteis afinal. 
    O bich’umano é essencialmente idólatra. 
    Torna dogma a própria incompreensão cósmica. 
    A minoria sabe-o, vive não em festa mas em fresta. 

    III 

    Outro dia será, virá, deixemos este em paz. 
    À hora de levar o lixo ao lixo, hora será. 
    Deixá-la-emos em sossego deposta p’a trás. 
    Busquemos força funda, alguma ’inda haverá. 

    Nada de euforias nem de eufemismos. 
    Sofremos nós acaso guerras & crimeias? 
    não – mas mais não somos que algarismos 
    em o livro-da-não-razão-das-não-ideias. 

    Por enquanto campeia, campeã, a nocturn’idade. 
    É débil, ou parece-o, a insistência. 
    Estende-se esmigalhada a vítrea cidade. 
    Do santo, nem a escudela, nem a paciência. 

    (IV) 

    (O silêncio das nove da noite é de repente violado pela passagem lenta de um carro com altifalante no tejadilho: cânticos ambulantes do embuste-de-Fátima, que faz hoje 103 anos de negócio. “A 13 de Maio / Na Cova da Iria / Apareceu sorrindo / A Virgem Maria.” Demora a escoar-se pelo ralo da noite esta comédia triste. Como tudo, todavia, acaba escoando-se – não há milagres.) 

    V 

    Ontem, alguns sinais – hoje, confirmação deles: vem tomando-me certa intranquilidade, certa fadiga pensativa, certa coisa gástrica a que só não chamo desesperança por esperança não ser coisa de meu gasto há muitos, muitos anos. Nada de grave, claro que não. O problema é ler menos – ou durante sessões mais fugazes. Ainda assim, estou quase a terminar a releitura de um livro diferente de Gabriel García Márquez: Notícia de um Sequestro. Na folha-de-guarda do volume anotei então a lápis: “Bertrand, Coimbra – 13/8/1997. Leitura concluída na madrugada de 25-8-97, na Misericórdia do Louriçal,”. Num fósforo, quase 23 anos arderam. Nada de grave – repito, mentindo-me.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante