52.
NADA DE GRAVE
Coimbra,
quarta-feira, 13 de Maio de 2020
I
Se não única, então uma das poucas coisas que me dana na certeza de morrer é a de, de lá, não poder escrever relatando-Vos como foi a passagem, como está a ser a demora & que projectos para o futuro me permitem ou não acalentar os guardas disfarçados de anjos que me não deixam a sós no catre. (Digo anjos admitindo vermes ou labaredas.)
Foi com este vago amargor-de-boca que hoje despertei ao cabo de uma noite dormida de uma só ponte cujos pilares eram menos a paz-de-alma do que a benzodiazepina engolida às três da madrugada.
De resto, pronto para o dia igual, ilusão afinal reconfortante & docemente mentirosa com que este pré-sexagenário – se lá chegar – vai entrete(ce)ndo a viagem quieta do quotidiano.
II
Monstros povoam a História, que queimam
– como queimaram, a 10 de Maio de 1933,
os livros banidos, assim queimando em efígie
os autores deles, mortos ou vivos que fossem.
Foi esse o ano em que nasceram Ruy Belo & António Osório.
Desconhecer a História é perpetuá-la
– alguém mais bem o reiterou antes.
Os livros não arderam nem ardem.
Goebbels nada pode contra A Ignorância da Morte.
Röhm nada opõe ao Transporte no Tempo.
Esta verdade não impede a monstruosidade nova.
Nova, não – reciclada das cinzas férteis afinal.
O bich’umano é essencialmente idólatra.
Torna dogma a própria incompreensão cósmica.
A minoria sabe-o, vive não em festa mas em fresta.
III
Outro dia será, virá, deixemos este em paz.
À hora de levar o lixo ao lixo, hora será.
Deixá-la-emos em sossego deposta p’a trás.
Busquemos força funda, alguma ’inda haverá.
Nada de euforias nem de eufemismos.
Sofremos nós acaso guerras & crimeias?
não – mas mais não somos que algarismos
em o livro-da-não-razão-das-não-ideias.
Por enquanto campeia, campeã, a nocturn’idade.
É débil, ou parece-o, a insistência.
Estende-se esmigalhada a vítrea cidade.
Do santo, nem a escudela, nem a paciência.
(IV)
(O silêncio das nove da noite é de repente violado pela passagem lenta de um carro com altifalante no tejadilho: cânticos ambulantes do embuste-de-Fátima, que faz hoje 103 anos de negócio. “A 13 de Maio / Na Cova da Iria / Apareceu sorrindo / A Virgem Maria.” Demora a escoar-se pelo ralo da noite esta comédia triste. Como tudo, todavia, acaba escoando-se – não há milagres.)
V
Ontem, alguns sinais – hoje, confirmação deles: vem tomando-me certa intranquilidade, certa fadiga pensativa, certa coisa gástrica a que só não chamo desesperança por esperança não ser coisa de meu gasto há muitos, muitos anos. Nada de grave, claro que não. O problema é ler menos – ou durante sessões mais fugazes. Ainda assim, estou quase a terminar a releitura de um livro diferente de Gabriel García Márquez: Notícia de um Sequestro. Na folha-de-guarda do volume anotei então a lápis: “Bertrand, Coimbra – 13/8/1997. Leitura concluída na madrugada de 25-8-97, na Misericórdia do Louriçal,”. Num fósforo, quase 23 anos arderam. Nada de grave – repito, mentindo-me.
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