55.
i. i. i. i. i.
Coimbra,
sexta-feira, 15 de Maio de 2020
I
Tenho
perdido Amigos – uns, pela janela horizontal da Morte; outros, pelo logradouro
traseiro da Vida. Eu não fui amigo de Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004), fui
apenas seu leitor. Todavia, o pouco que sei dele é um pouco que me entristece
muito. Muito & mesmo a sério. Alguma prosa & alguns versos dele. Certa imaginação
que a figura me desperta. Penso ter visto uma fotografia dele com três amigos,
naquele a-preto-e-branco de uma talvez-Coimbra em um talvez-Novembro de um
talvez-1962. Voltarei a procurar essa imagem. Tristeza garantida, eu sei.
II
Telefonou-me
há pouco (davam três minutos sobre as dezoito horas deste dia macilento) um Amigo
que não se me perdeu – o João Artur P.C., filho do belíssimo par, já
infelizmente finado, Henrique Costa & Maria Orlanda Portulez, gente tão boa
dali Fontela, Figueira da Foz. Conversámos maduramente: de pretéritos, futuros
& isto a que chamamos presente (rica prenda…). Voltei depois
a este canto de papel. Aqui estou: cave canem.
III
Imagens
infindas coruscam incessantes.
O
paquidérmico Göring pilhando mortos.
A
mulher islandesa acendendo o lar.
A
mulher irlandesa tomando o chá.
Extermínios
sistem’automatizados – todos os séculos.
O
carreiro pelo canavial, cães parados à chuva.
O
aparato palaciano do meu mais antigo Inverno.
O
irmão do pianista Bill Evans, chamando-o d’além.
Os
meus dois mas sem mim ao piano.
Aquela
roda de crianças metálicas nas ruínas de Estalinegrado.
(Outr)A
prenhez de Augusta Cuca resultando caixãozinho-branco.
A
agonia daquela rapariga no Hospital dos Covões.
(Morreu
no colo da minha Mãe em formato-pietà.)
Nomes-datas
em mármore, maninha terra.
A
boina de Wagner & a cornet’acústica de Beethoven.
O
gato de Cortázar & os óculos do meu Pai.
Um
velho esquecido à varanda que lhe dá oriente.
Ondas
de trigo ao sol verde, à lua púrpura.
O
estivador em pausa almoçando sardinh’enlatada.
Infindas
indefessas invencíveis imagens íntimas.
IV
A
outro sol foi que nos juntámos.
Foi
no adro da igreja, crescia o plátano.
A
geração à nossa anterior já transigia.
Juvenis
éramos, cada um de si manhã.
Tem
havido mudança na gerência.
Casario
houve já arrasado até.
Duas
gerações novas preparam já terceira.
A
lua só nos parece a mesma, ao campo dando.
Diz
que sempre assim tem sido a novidade-nenhuma.
À
beira-rio se aluga gente, cabaz sortido.
Não,
Irene, o Menino-Jesus não tem aparecido.
E
o João traz as costas cheias de caruma.
Não
de mim esperes que eu desespere.
Para
o relógio, agonia & alegria são sinónimos.
O
problema é se te der para a má-consciência.
De
tua má-fé, versos me não faltam – espera-os.
Justo
é que V. pareça pueril a minha cifra.
O
que eu cifre & o que julgueis – quê? Nada.
A
chave não importa, só importa a charada.
Como
quando, Rosa, perfumavas tod’a’venida.
Ao
leite azul da noit’etern’& sideral.
Ao
sal na pele, ao grão de mel, à lua anil.
Ao
nosso ajuntamento por razão alguma especial.
E
ao distinguir-te eu às cegas ao sol.
Sim,
leio bulas posológicas, gosto daquele paleio.
Não,
desta ilha não saio, não há horizonte.
Lembro-me
de termos frio mas também lume em casa.
Até
de casa termos & sermos me lembro.
Ai,
Belita, que António se tornou o teu Man’el!
Ai,
Candita, bendita te seja a vida inteira!
Ai,
Rosarita, cravito-de-papel!
Ai,
Aparecidita, que grande bebedeira!
A
minha terra é hoje a minha pele apenas.
A
V.ª, não sei, nem V. me lo contais.
A
outro sol foi que ficámos sem pais.
A
lua aparece-nos na mesma dando açucenas.
Gostaria
muito de não apenas por a morte sermos afins.
Conheço
porém a essência desértica da vida comum.
Tanto
faz o Cristo na parede como o Ritchie Blackmore.
Gostaria
sim, garanto-Vo-lo sem hipocondrias.
Lua,
lu’açucen’anil, dadora de campos & gerações.
Sol-relógio
sem clemência nem faraónica paciência.
Certo
Natal de quando nós-todos-vivos, colhi o musgo.
Presépio-pagão
se nos volveu o coração.
Aqui
é onde quero a estante nova, envernizo-a eu.
Não
V. amei bem, é curial reconhecê-lo.
Também
esta é uma carta – escrevivo-la eu.
Continuo
todavia sem dinheiro para o sê(-)lo.
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