48.
NADA EM FAMÍLIA
Coimbra, sábado, 9 de Maio de 2020
I
É uma vez uma família. Elementos afins por natureza, caracteres diversos como na caixa do tipógrafo. Masculino & feminino, preferências artísticas, inclinações profissionais, maior & menor lealdade a princípios, maior & menor prossecução de fins.
A dispersão dos elementos é imparável, inelutável, natural – pode chamar-se-lhe Entropia. Ou Maria. Não importa a etiqueta. Importa tão-só ir de cabo a cabo, acabo acabo acabo.
Optimismo – considerar família substantivo-colectivo. Realismo – sabê-la apenas punhado-de-singulares.
Em casa como pela rua, estrad’afora como florest’adentro – é-se um(a).
II
Sem rebuço, admito que muito pouco da realidade hodierna me interessa, muito menos me estimula. Fisicamente, fisiologicamente, biologicamente – estou restringido a este tempo. Ética, moral, antropologicamente até – não. Interesse & estímulo, tónico & viço – encontro-(m)os alhures. Alhures no Tempo, que aqui por Coimbra é tão universal & tão inelutável & tão irreparável quão em Cornwall, Odessa, Lagos, Macau, tudo, ruínas todas.
Por hoje, prefiro o vento sonoro no planalto que habito. Voz forte, a eólica deste Sábado. Basta-me bem ela por modernidade. Sou nisto franquíssimo. Nada lamento. Não-pretérita, não-futura, não-instantânea: é tão-só ela-por-ela, -com-ela, -em-ela.
(III)
(Sossegadas, proveitosas leituras venho colhendo das grandes resmas de papel que o esquecimento não podou ainda. Vou contando cifras, pequeníssimas coisas em que é suave depois matutar – lidas coisas que, lembradas, vividas parecem pelo próprio. E por o mesmo.)
IV
Panorama: curva do rio no sentido norte-oeste, um pouco mais cá a ponte pedonal, mais para cá a ponte rodoviária, mais além a ponte ferroviária. Da serra ao oceano, curvando quando necessário: ou por obstáculo natural, ou por mão humana. Um barco de médio calado porta combustível vegetal, correio, provisões alimentícias sortidas, ferramentária, tecidos, sementes, vinhos & azeite. D’além, o cordão de casario fiado em torno do paço conventual. D’aquém, este planalto, de onde escrevo sem mentir demasiado.
Vagueio pela casa, suave & furtivamente perseguido pelo tigre local, o senhor meu Gato. Este é outro mundo, o alternativo possível, sem rasto que deixar a não ser este trilho calígrafo. Enquanto deambulo pelo (r)estrito palacete, forja-se-me o intróito a um texto, algo como: “Tenho fundadas razões para crer ter sido em uma estância senatorial de montanha que certo livro foi oferecido por mãos senhoris & anglógrafas a mãos portuguesas & senhoris também.” (Cf. infra, a páginas 168 & ss. deste ms. mesmo.) Para já, fica assim. Enquanto não desenvolvo o sobredito relato, dedico-me a receber do entardenoitecer a oferenda larga. É da marquise que miro o ocidente. De tarde, houve hora invernosa – mas ora, nem por isso. Vive-se bem, às 21h02m do nono dia do corrente Maio, de manga-curta. Na rua, saberei mais logo, pelas 23h & picos, quando for ao contentor lixeiro acarretar, que temperatura vagueará pelo deserto. Temos, Tigre & eu, algum tempo. De correr não hemos precisão.
V
Noite – país (do) singular. Ardil do fogo.
Bosque só a sós devassável. Circo sem lona.
VI
Pacto com a inominável voz profunda, esta
que da meninice à velhice só quer festa.
Lembrança & pacto, verso (novo ou velho) & pacto.
Concessão, dissensão, rumor, mentira & facto.
Íntima homilia, vão deus ante praça vazia.
Nada lhe respondas, que nem pergunta merece.
Graciosa é a luz que o mar alarga, Maria.
O que vem, vem por & para pouco. E desaparece.
Ninguém na rua. Chega a ser mui agradável.
Repletos os contentores lixeiro-municipais.
Chego a não apurar o que me agrada mais:
se o aprazível silêncio, se a soledade amável.
Tem graça quereres de mim alguma linha
que à tua vida diga alguma coisa nova.
Receio não seja tal o caso desta trova,
concebida em mudez da mais caladinha.
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