44.
C. BRINCANDO EM R.
Coimbra, terça-feira, 5 de Maio de 2020
I
Nove anos adiantadas a Ulisses,
voltam as andorinhas,
fidelíssimas penélopes tecedeiras
do céu.
II
Dez anos de monarquia caída de podre (e a tiro); 16 anos
incompletos de dissidências intestinas da primeira república (com
carne-para-canhão de uma grande guerra pelo meio); 48 anos de miserável
ditadura; e democracia no último quarto – eis o século XX português. Nação
valente. E mortal.
III
Pedra. Ferro. Açafrão. Cebola. Batata-doce.
Inhame. Mandioca. Gergelim. Sagu. Arroz.
Feijão. Canela. Cera. Mel. Carmim. Copra.
Areca. Amêndoa. Peixe. O senhor Comandante
Sarmento Rodrigues, nosso Ministro do Ultramar,
aprecia a riqueza dos pobrezinhos do nosso Timor
tão ricos de singela lusitanidade imperial. É
singelo e comovente o monumento erguido em
Ailéu à memória dos mártires chacinados pelos
Japoneses em 1942. Os indonésios não tardam
aí. Dê de frosques, senhor Ministro. Acoite-se
em merecido olvido. A bem da Nação, claro.
IV
Percebida a tempo a brevidade, sáfara não-raro, da existência física (mas ele há outra?), não é fácil ir dando do recado de viver reconhecendo importância a certas coisas que tantos consideram cruciais. Não dou exemplos por serem de mais evidentes. Trata-se, aqui, não de obscuridade voluntária minha – mas de um límpido deixa-andar & ide-vos-pôr-num-porco, alfim.
Faz hoje um mês que morreu um
amigo meu. Disso dei notícia neste caderno (e no blog que mantenho). Um
mês – como se nada fôra, nada se passara, nada importasse. Nos entretantos,
levei lixo ao contentor, li Sainte-Beuve traduzido por António Sérgio, cometi
versos, comi agrião, toucinho, feijão, pão, bacalhau. Digeri. Defequei.
Deitei-me ao mar restrito do leito para naufragar sem remédio na agra angra de
certos sonhos tristes – não trágicos, tristes – de que certos farrapos ainda me
amarguram a labiação & a embocadura. So what? Nada. So-what-nada.
Nisto (des)ando.
V
Imagem de crianças brincando em relvado. Ao longe,
muito. Como a infância quando recordada – longínqua como o poente.
Dissipa-se tal imagem, outras se produzem no éter.
Voláteis, de seráfica substância, inverosímeis mas reais.
Entretenho a demora pesando a baba das horas, amparado
pela teia maravilhosa das palavras do Prontuário que à cabeceira me
serve de segundo candeeiro.
Beleza & Fealdade mutuamente se contaminam – não me
parece que se odeiem nem amem, assim contrariando a dúplice instância de Caio
(ou Gaio) Valério Catulo, esse formoso pândego da idade romana.
Parece-me lobrigar Calvino em seu reduto parisiense;
Rainer Maria naquela casa remota; Pessoa como cão à chuva, completamente cão
todo chuva fazendo-se gato ao sol; Lowry em espelho-garrafa; etc.
(O parágrafo imediatamente anterior reproduz &
reitera, à sua maneira, o primeiro: crianças brincando em relvado etc.)
VI
Vejo o animal existir sem perguntar.
Essa qualquer-coisa que nos separa dele.
Chamamos terça-feira ao dia.
O animal vive-o sem nome que o perca.
Humana-se o Nada, chama-se-lhe Deus.
Enverga-se a opa, foguetório ao sol.
Praias formigam, à luz de etern’efémeros quási nus.
E ainda assim a Beleza teima, capciosa rosa.
O belo animal não se vê animal nem belo.
Ele aproveita a hora, é de si mesmo a verdade mesma.
Biológica memória lhe é ancestral escola.
Esmola não pede ao sentimento, Deus o livre.
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