06/09/2020

VinteVinte - 44 (todo)


44.

 

C. BRINCANDO EM R.

 

Coimbra, terça-feira, 5 de Maio de 2020

 

 

 

I

 

Nove anos adiantadas a Ulisses,

voltam as andorinhas,

fidelíssimas penélopes tecedeiras do céu.

 

II

 

Dez anos de monarquia caída de podre (e a tiro); 16 anos incompletos de dissidências intestinas da primeira república (com carne-para-canhão de uma grande guerra pelo meio); 48 anos de miserável ditadura; e democracia no último quarto – eis o século XX português. Nação valente. E mortal.

 

III

 



Pedra. Ferro. Açafrão. Cebola. Batata-doce.
Inhame. Mandioca. Gergelim. Sagu. Arroz.
Feijão. Canela. Cera. Mel. Carmim. Copra.
Areca. Amêndoa. Peixe. O senhor Comandante
Sarmento Rodrigues, nosso Ministro do Ultramar,
aprecia a riqueza dos pobrezinhos do nosso Timor
tão ricos de singela lusitanidade imperial. É
singelo e comovente o monumento erguido em
Ailéu à memória dos mártires chacinados pelos
Japoneses em 1942. Os indonésios não tardam
aí. Dê de frosques, senhor Ministro. Acoite-se
em merecido olvido. A bem da Nação, claro.


IV
 
Percebida a tempo a brevidade, sáfara não-raro, da existência física (mas ele há outra?), não é fácil ir dando do recado de viver reconhecendo importância a certas coisas que tantos consideram cruciais. Não dou exemplos por serem de mais evidentes. Trata-se, aqui, não de obscuridade voluntária minha – mas de um límpido deixa-andar & ide-vos-pôr-num-porco, alfim.

Faz hoje um mês que morreu um amigo meu. Disso dei notícia neste caderno (e no blog que mantenho). Um mês – como se nada fôra, nada se passara, nada importasse. Nos entretantos, levei lixo ao contentor, li Sainte-Beuve traduzido por António Sérgio, cometi versos, comi agrião, toucinho, feijão, pão, bacalhau. Digeri. Defequei. Deitei-me ao mar restrito do leito para naufragar sem remédio na agra angra de certos sonhos tristes – não trágicos, tristes – de que certos farrapos ainda me amarguram a labiação & a embocadura. So what? Nada. So-what-nada. Nisto (des)ando.

 

V

 

Imagem de crianças brincando em relvado. Ao longe, muito. Como a infância quando recordada – longínqua como o poente.

Dissipa-se tal imagem, outras se produzem no éter. Voláteis, de seráfica substância, inverosímeis mas reais.

Entretenho a demora pesando a baba das horas, amparado pela teia maravilhosa das palavras do Prontuário que à cabeceira me serve de segundo candeeiro.

Beleza & Fealdade mutuamente se contaminam – não me parece que se odeiem nem amem, assim contrariando a dúplice instância de Caio (ou Gaio) Valério Catulo, esse formoso pândego da idade romana.

Parece-me lobrigar Calvino em seu reduto parisiense; Rainer Maria naquela casa remota; Pessoa como cão à chuva, completamente cão todo chuva fazendo-se gato ao sol; Lowry em espelho-garrafa; etc.

(O parágrafo imediatamente anterior reproduz & reitera, à sua maneira, o primeiro: crianças brincando em relvado etc.)

 

VI

 



Vejo o animal existir sem perguntar.
Essa qualquer-coisa que nos separa dele.
Chamamos terça-feira ao dia.
O animal vive-o sem nome que o perca.

Humana-se o Nada, chama-se-lhe Deus.
Enverga-se a opa, foguetório ao sol.
Praias formigam, à luz de etern’efémeros quási nus.
E ainda assim a Beleza teima, capciosa rosa.

O belo animal não se vê animal nem belo.
Ele aproveita a hora, é de si mesmo a verdade mesma.
Biológica memória lhe é ancestral escola.
Esmola não pede ao sentimento, Deus o livre.

Sem comentários:

Canzoada Assaltante