Do
massacre sírio da RTP
A terça-feira da semana de regresso do
nosso jornal amanheceu murganhada: a poalha humedeceu até a memória a uma
pessoa, oxidando-lhe-me as ferrosas articulações do pensamento redactor. À hora
a que redijo, o trânsito da avenida parece sofrer da inconsistência material
dos objectos quando sonhados. Uma espécie de torpor amiúda mais ainda os
projectos individuais, os colarinhos das camisas e essa vaga coisa em lá-menor
a que, à falta de melhor palavra, chamamos Destino.
Resgata-me todavia da aquosa melancolia a
salvação óptica da beleza das senhoras, isso que a chuva, em vez de renegar,
antes reitera. A duas mesas de distância da minha chávena e do meu lápis, um
fêmeo espécime muito ruivo celebra o aparato de carnaval da própria formosura:
pintalgada de avelã a esmeralda de cada olho, decote do tempo mais-que-perfeito
ao modo dos verbos de antigamente, ancas de viola cingível à mãozada e pés
iluminados por dentro como saibro de aquário, o todo dela resultando num verniz
pessoal, transmissível e ve(ne)noso.
Enquanto ela comenta para a dona do Café
que o Relvas quer fazer da RTP-1 um submarino e da RTP-2 um sobreiro (ao que a
D.ª Lena lhe responde que “esse fulano
está para o serviço público de televisão como aquela velha espanhola para o
restauro da cabeça de Cristo”), divirjo dela a atenção para fixá-la, à
atenção, na rapariga da farmácia, pouco mais idosa do que a mais antiga das
minhas filhas: um cravo moreno. De costas para o meu leitor, ela parece confirmar
do âmbar o milagre estagnado da resina. O estatuto dela chega a ser perigoso,
de tão parecido com o da minha mulher, essa santa de bairro ante que
irremediavelmente me genuflicto para sempre. Chama-se Genciana, a farmacêutica
moça. Pelas dez, 10 e picos, vem ela esfumaçar seu cigarrito de filtro fino
branco e rechupar sua biquita fervida. No preciso momento em que vos faço
relatório de sua (dela) epifania, conversando vai ela com uma mulherona tão
avantajadamente larga e gorda, que só lhe falta uma data de mar por cima para
ser outro Titanic. O falatório delas é sobre esse hóquei-em-patins das
luminárias parolas da nossa literatura: se em vez do Nobel para o Saramago
comunista não teria sido mais acertado tê-lo dado ao Lob’Antunes doutor. (Eu
tenho opinião sobre o assunto, mas reservo-me-a.)
Nos entretantos, o chuvisco desistiu.
Concentrado qual polpa de fruto cinzento, o ar da respiração raspa abafos
eléctrodos. Estar vivo parece trabalho difícil, minucioso, molha-tolos-e-todos.
É então que duas moçoilas, ambas de uma capilaridade cabeçal de louro químico,
vêm cristianorronaldar e ritapereirar frivoleiras de lixo social à la TVI. A
mais alta semelha um gafanhoto de arame. A mais curta é da natureza pogonófora
dos rodilhões de pêlos que juncam e entrançam os ralos dos lavatórios
municipais. Nenhuma delas me borbulha a derme poética, pelo que rodo a câmara
lapiseira para a esquerda-baixa do palco-café, zon’área em que, a Deus Graças,
vem existindo um torpedo grácil Rosa Maria Emanuel de sua (dela) graça, 33
aninhos: um Cristo feminino. Aprecio dela (e vo-la mostro, que sou só ciumento
quando me dá na corneta dos dias sem crónica ribatejana) a labiação frutada, a
axila tenra, a articulação mola-da-roupa das pernas rijas e boas, os sapatitos
verdes mentolizando-lhe as estremas brancas em apuro rosado de cosmético
esmalte.
Escoar-me-ia dela, para vosso circo
deleitoso, mais photomaton, não fôra ser hora de vos fazer envio da crónica.
Pago o gasto, apago o gesto, desarmo a tenda e rumo ao computador da casa, tugúrio
em que, dominatrix, a minha mulher quer saber se sempre fiz a crónica e sobre
quê.
Evasivo-me mentindo-lhe que desta vez não é
sobre gajas que não são ela, que ando preocupado com os massacres na Síria, que
o Júlio Isidro e o Zé Rodrigues dos Santos ’inda ficam mas-é no desemprego por
causa do Relvas, esse bestunto capaz de em dois tempos, ou canais, obter
equivalência à BBC para a RTP que Deus já tem.
A mulher aquiesce e remunera-me com uma
pratada de bacalhau à Gomes-de-Sá, que é um mimo com azeitonas pretas e um
copázio de tinto velho dO Ribatejo.
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