31. UMA MANHÃ EM
TONDELA
Tondela, segunda-feira, 5 de Julho de 2010
Sofrer é o estado em lentidão do pensar,
pensar é como sofrer calor a mais. Vi hoje águas e pedras, Penacova à passagem,
desejei ser algo como um fauno fluvial, um pouco de sopa em uma marmita, um
pedaço de pão, uma garrafa de água perfumada de limão, mas não parei à beira-água,
cheguei a Tondela e vi a minha vida espelhada nas montras do pequeno-comércio.
Talvez um dia vá ainda à Arrábida, talvez algum tempo me seja permitido em
Sintra. Eu e os sonhos que me sonham, talvez, assaremos peixe na orla do
Desconhecido, barcos fátuos gaseando o horizonte-azul-flúor, libações nos
conduzirão à noite perdoada, raparigas e rapazes pintalgando de pequenos sinais
vermelhos/amarelos/verdes o âmbar da praia, o mercúrio solar aquiescendo
crianças, mas, destas, apenas as feitas por amor. Sofrer também é uma forma de
sofisticação – mais sofisticada quão mais subtil. Estes verdes, estes azuis,
este céu cujo poder resulta da absolutíssima indiferença ao pensassofrimento
das pessoas para-sempre & das crianças em-breve. Azeitonas, cebolinhas,
pimentos, orégãos, silveiras, amoras silvestres, olhos de água morna
dulcificando o instante de uma pessoa olhada por outra. A Mãe não, a Mãe não
está bem. Faltou a luz no Bar das Piscinas, uma espécie de sossego cria moscas
na manhã já toda madura, poluo a minha camisa de liquefacção, suo como se
pensasse – como se o pensasse fôra não sofrer, nem a Mãe nem o calor. Vi a
confeitaria encerrada (as coisas encerram muito, Mãe), vi mulheres bonitas como
talos tenros de jasmim, rapazes de lentes fumadas oficiando o incenso da
mocidade, velhos homens de chapéu exercendo sombras antigas, pórticos de pedra
que são cristalizações do Inverno, a caminho de cá vi o mar reproduzido em
ondas florestais, somos os peixes silvícolas desse mar que por vezes arde. De
onde surgirá o que vai matar-me? Dos pulmões, da próstata, de uma esquina
sináptica, do coração, dos ossos, dos intestinos? Isto vivo, porém e enquanto.
Ao entardenoitecer, também eu me volvo veludo – e a minha pele fica prata, e
argênteo fosforesço na solidão essencial das ruas que levam ao quarto-casa. Recordarei
em frente, escrevendo. Somos de uma pureza endógena impressionante, mas não
todos, só alguns de nós. Actores do Guião Orgânico, isso sim todos nós. Gente
que adoece de amor, que, por amar, ama e adoece. Frechas de puro ar
atravessador de oliveiras, em colina de restolho flavo, enfermo de um ouro que
as ovelhas pontuam de lanígera ortografia. Seres instantes, particípios futuros
calçados de tamancas pretéritas. Lumes que as velhas acendem em lar, a horta
humílima trazida a ser perfume que ferve na panela de ferro tripé. O porquinho
cristão, muito róseo, muito lípido, grunhe versos saciados de lavagem. O
cavalicoque alteia a campina, o pedreiro regressa de motorizada ao casal branco
de arestas tira-linhas, o vinho verde jorra no balcão do bar das bombas de
gasolina, 10h51m. Fora de imaginações, sou quase feliz na vizinhança de mesa
deste cavalheiro de calções & chinelos rezando o breviário do jornal
desportivo, daqueles dois sexagenários que tasquinham amendoins, daqueloutro
distraído que unha um dente em remoção do naco de bolo alimentar, daquela
grávida apreensiva em atenção vagueando outras paragens nascituras. Bonecos:
uma águia-quinquilharia, um preto-cantor-de-jazz, um ET-marciano, uma vaquinha
pret&branca de úberes cor-de-salmão, um jogador do Sporting imobilizado num
pontapé de plástico, um viking de BD, um duende puritano, um caracol mágico, um
mamilo não chupado e uma girafa com dores no pescoço.
Brasa. É como se fôssemos corpúsculos
parasitários obrigados a viver no pêlo de um cão descomunal. Vaga de forno na
cara, corpo suspenso de água quente que resulta do ar, da luz. Fornalha. No
Ferrador, em frente ao Tribunal de Tondela. Liquescentes, os sólidos resistem
como podem à acendalha de ter nascido. No televisor, essa luminária estranha
chamada Jorge Gabriel. A parolice obrigatória de certa portugalidade. A redução
a certo estrume “cultural” de uma Nação que exilou, adentro como afora,
gigantes como Camilo Pessanha, António Nobre, Wenceslau de Moraes e, sim,
Fernando Pessoa, coitado, obrigado a sentir as fodas da mãe viúva com um
bigodaças que nada tinha a ver com o Joaquim crítico de ópera do S. Carlos, pai
dele(s) Fernando(s). Faço horas (manhã quase feita e desfeita, 12h30m) para ir
a tribunal testemunhar em desfavor de uma excrescência orgânica. Cruz solar.
Ínfima fracção: cores esmaecidas, fl(u)orescidas, não matinais já e já
crepusculares.
Global Ovo Estrelado: a
chapa do ar às 14h26m. Tondela, vários espelhos-de-água jorrando escumoso sémen
H2O. Desconheço (ou não recordo) o orago da bonita (estreita, alta) igreja de
culto católico que encima a Praça Prof. Doutor Qualquer Coisa. Casas
perfeitamente talhadas em água-fervente. O Solar fechou-se, já não serve. O
Ferrador ainda, mas não já refeições de talher. Está diferente de há cinco
anos, Tondela, época em perdi o meu tempo com (alguma, não toda) gente que não
vale meia pele de prepúcio. Árvores vivas – dormentes, estivais. À noite,
atirarão sombra ao alto, partícipes de estrelas. Uma velha de saia-joelho de
cor azul-escura como uma freira estranha, dessas que se tornam enfermeiras de
meninos negros por causa de uma falsa caridade mercurocromo. Velhos na sala de
espera do tribunal, obra de 1971. Prof. Doutor Qualquer Coisa Anselmo Ferraz de
Carvalho. Parecem peixes, os munícipes: babujam frases encalmadas. São elfos de
finlândias em chamas. Dividem-se entre o Tartagal e a Cristiânia, equador ao
meio. Outros sabem de carpintaria de barcos, outros de fuselagem, outros de
heurística, outros de hialurgia – ou o caraças.
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