MANSO
PUGILATO
Leiria, tarde de quarta-feira, 22 de Agosto
de 2012
I
Recorda de olhos cerrados uma aurora
poalhada de humidade descida que tornava pardas as primeiras flores vermelhas
do ano.
Sabe-lhe bem a recordação, mesmo sabendo-a
postiça: sabor e saber não têm de coincidir.
Segue-se-lhe na pantalha obscurecida um
maná de clarões brancos, entre os que alguns rostos.
Os cheiros vêm depois – ou talvez já
lá-nele fossem durante: o da fruta no ápice do Outono, quando a embriaguez das
vespas as leva alegremente aos umbrais do fenecimento;
e o da rapariga que lhe deixou na língua o
conhecimento da gazela molhada.
Estas coisas assim podem acontecer à plena
publicidade da luz, à mesa de um café como num banco de jardim.
Basta cerrar os olhos para ver, cheirar e
levar à Língua.
II
Nunca irei à Toscânia.
É da minha condição.
O Raul tem um Scania,
já foi ao Cazaquistão.
III
Empalideça de vez a tez do homem
que, ante um rio, do tempo tão natural
cópia, a foz não queira conhecer a tempo
de o instante a montante de quando jovem
viceje um pouco ’inda, ’inda que, mortal,
jusante lh’a finifoz dê passamento.
IV
Prostra-me o perene renovo da Natura, cujo
esboço de si mesma nos ridiculariza a caricatura de a nós nos termos por
definitivos, a começar pela estupidez de Deus e a continuar pelo esterco das
unhas.
Conheci em uma aldeia de sopé de serra um
padre alto e manso que lia bons romances ditos policiais, pelo que, e sem mais,
se me tornou fácil suspeitá-lo adepto fervoroso de
dar-a-outra-face-o-caraças-mas-é.
V
Passa na galeria uma família tipo
semente-de-arrepio.
Cheiram os cinco a cartão mijado e a
passitos de rato sobre chapa de zinco.
Mas nem Wall Street nem a Cova da Iria
podem acudir a tudo, valha-lhes God.
VI
Não knockoutarei hoje, não ’inda, o meu adversário
canhoto.
A culpa vista ao espelho não torna o
espelho culpado.
À
MANEIRA DE TÓ PEREIRA
Leiria, manhã de quarta-feira, 22 de Agosto
de 2012
Mil fontes sangram a terra, revivendo-a
porém, que a não matando. Sol e lua sempre fizeram topless, para compreensível
desespero de Sua Santidade Vestida. Etelvina preenche todos os dias o cupão da
página 47 do jornal para ir às compras de borla uma vez na vida. Crianças entre
cereais altos que o vento cresce. Assim se começa o dia.
E o dia virá, o dia verá.
Já não vejo tão bem ao longe como nunca vi.
Somos quase todos da linhagem possível.
A criadagem pecuária também é gente.
António Patrício foi a Macau, viu-se lá
morto: O Fim etc.
Por vezes os recursos escasseiam de vez, é
no que (não) dá.
Impressões brandas, como as dos dedos,
acontecem em seda.
Os telefones móveis gritam na rua
indiferenças.
Orgulho familiar, ostentação material,
denotação seca, bebés de leite-em-pó, dificuldades acrescidas &
crescimentos difíceis, patrulhas marítimas, saudades em terra, excitação das
peles, gastos com o-comer-o-vestir-o-calçar por causa
do-cavalheiro-da-senhora-e-da-criança, antigamente eu era capaz de arder
horas-a-fio nisto, hoje continuo a ser. E a-ser. E por-ser.
Todos temos de vir-a-ser.
Todos deveríamos ter e ser do dever de ver.
A vida está por modas, ao contrário do que
se queixa o Comércio.
Um cão preto cruza a rua pela passadeira.
Uma senhora marreca de blusa roxa chamada
Fátima.
A rapariga do rent-a-car a caminho do
multibanco.
Ainda o sol não abriu e já as duas de
óculos fumados, a Fátima como a Rent.
Basiliscos e meteoritos fazem sonhar os
ovniófilos.
Adormeço todas as noites à tremeluz da vela
perfumada que a mulher me devota.
Poternas castelãs, trincheiras em campo
francês, a carneirada citadina trânsito-engarrafada à americana nos drive-in da
comida plástica à americana, a ucraniana boazona da pastelaria que faz
concuspiçar os caixeiros-não-viajantes à hora da bica e a toda a hora também,
os calendários com mamas das oficin’autos, tenho pela poesia medieval um
respeito que me faz quase aceitar o drive-in do santuário de Fátima, não é esta
da marreca roxa, é a Outra.
O grupo de Bloomsbury, o Café de Flore,
Acapulco, o Palácio da Pena, homens de sandálias & mulheres de botas à
militar, ao longe as chaminés fumando domesticidade para mim perdida por
ancestro, Casais Monteiro recebendo cartas de António Nogueira, esse ortónimo
afinal nuclear.
Reptilinhas de tráfic’auto’strada rumo ao
sul de nenhures, paragem em Vendas Novas para uma bifana e uma s’mole.
Ontem não escrevi ainda isto.
Washington Irving, Espectros:
começava
a desejar-se a mil léguas do marquês e da sua implacável memória,
são coisas que acontecem até a um para
consigo mesmo.
A Cidade nem está a dormir, nem acordada.
Uma espécie de limbo nos purgatoria noite
& dia.
Redactor de café, solidarizo-me sem gesto
em sonambulismo.
Já nem febre temos, ó meus amigos que não
exclamo.
Máquinas de trepidar ventres
colesterolizados em os ginásios à americana das capoeiras de cristal dos
sho-foda-se-pingues-centers.
Mas também é verdade que crianças pelas
praias repercutindo quiçá a mania que o céu tem de dar estrelas, e o campo,
flores.
Sonhei hoje com a minha mais nova, não fui
capaz de lhe atribuir idade, é porque ela tinha várias no sonho, todos temos,
todos somos sonhados.
Mil terras sonham ter uma fonte.
Temos todos duas na cabeça.
Em política justa, a cada falso –
cadafalso.
Mas ele não há maneira.
Na minha Primeira Rua, lá longe, longe já
do diad’hoje, hordas de operários fabris ao relógio eram, passando, o meu
calendário de cada dia.
Manhã muito cedo, cheirava a cafeteira
chilra e a pão escuro com margarina.
As fábricas engoliam-(n)os.
A caminho do almoço, cheiravam a coisas
feitas.
De regresso, cheiravam a bacalhau e a
nêsperas.
As fábricas digeriam-(n)os.
Ao fim da jornada, cheiravam a dia ganho.
E eram formosos em sua fadiga, que eu
assimilava, quê?, aos cinco, 6, set’oit’anos.
Eram os meus chéguèvaras, os meus eusébios,
não sei dizer de outra maneira.
Ist’hoje é muito diferente por já não haver
operários.
Ist’hoje, quando os há, são
“colaboradores”, à americana, p’x-tá-claro.
Mas Camões:
Verdade,
Amor, Razão, Merecimento,
qualquer
alma farão segura e forte;
porém,
Fortuna, Caso, Tempo e Sorte,
têm
do confuso mundo o regimento.
Pois é, Luiz, hás-de arranjar muitos
clientes assim, vai-lá-vai.
Verbalismo…
Sim,
verbalismo…
Aproveitar
o tempo!
Não
ter um minuto que o exame de consciência desconheça…
Velho Álvaro de Campos, que escapa de estar
morto por nunca ter vivido…
Homenzorro, além, de bigode ruço e cara
vermelha qual bandeira de vinho: quanto, confesso, gosto eu de portugueses
assim!
Navegadores todos eles – e conquistadores e
missionários e descobridores e escrivães e arquitectos e adamastontos e tantos!
Até que um dia a congestão da feijoada os alcácerkibiriza
de uma vez só, partidos no ar como uma rola baleada, ou mastro esgalhado em
dois a sudoeste-nau de nenhures.
O cão preto retorna pela mesma passadeira.
Encheram-se menos este ano as caixas
esmoleres da Cova da Iria.
Entreguei o jornal do dia a uma preciosa
que veio da cabeleireira há minutos, cheira a laca quente e a pés frios, quer
ser ruça de cabeça como o barrigudo da cara vermelha é de bigode.
Lamas férreas patinham oxidações
osteoporóticas.
A carteira a prazo lê como eu: duas vezes
cada nome (papel, caixa do correio).
Hoje Há Filetes de Pescada não sei onde nem
para quê/quem.
Fritam-(n)os as etelvinas-cupões,
ó Luiz de Campos!,
ó Álvaro de Camões!
*
(Certa manhãzinha, completamente sozinho,
encontrei completamente sozinho o Tó Pereira da sapataria. Fomos beber uma
malvasia. Cada um pagou a sua, como se deve pagar o dia.)
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