DESCAMPADO COM
CICLISTAS
Leiria, tarde de sábado, 25 de Agosto de
2012
I
Fanada a manhã, diáfana sobreveio a tarde.
A Cidade espera o contra-relógio do penúltimo dia da Volta a Portugal em
Bicicleta. Da galeria da Rita vai dar para ver os ciclistas em último esforço
pela Avenida.
É deveras uma tarde muito pura, dessas que
vale a pena viver sem pensar em valores, penas ou vidas.
Mesmo assim, do outro lado da festa, perto
do rio, sinto a passagem de uma pessoa pass(e)ando (pessoando, portanto) a
própria infelicidade, a qual, sendo dela, parece ser ela a levá-la pela trela.
Passepessoando a infelicidade como a um cão. O cão a levá-la. Mas talvez não
seja infelicidade, talvez se trate de solidão – não são o mesmo. O cão da
infelicidade e a cadela da solidão podem ser irmãos ou concubinos – mas
diferem.
Os ciclistas vêm chegando: heróicos, quase
todos sem número. Trazem o vento consigo. São filhos de alguém todos, pais de
alguém alguns. A pessoa-cão ao pé do rio não os espera nem olha. Procedendo vai
à sua íntima volta portuguesa, ao esplendor da vigésima-quinta etapa de Agosto.
II
O alto arvoredo beira-rio celebra a
fulminandiamantes o matrimónio sol-vento. Assisto a essa paleta viva, desnudado
de grandes semiologias. A meu modo, celebro quase tudo. Saí de ao pé do
gradeamento, tirei já fotografias a um que outro ciclista, mas não pude evitar
a recordação de quanto o meu Velho gostava de ciclismo, recolhi à Rita, tenho
direito à minha cerveja e ao meu caderno, esse (este) cemitério-de-elefantes.
III
A uma ronda de castelos procedo sem sair
daqui-dentro.
Nunca estive para turismos que não
escritos.
Não, eu não brado por aí, por aí não and’eu
aos gritos.
Turismo é por cá dentro, a tempo do atempo
do Tempo.
Da negação Dele também, por força do seguro
amor
que ossificou esta roulotte que a nenhures
vai e sou.
Para nada conto, mas sou contador:
vou contando ciclistas (o 41 ’ind’agora
passou).
A uma fronda de rios sucedo sem m’ir
dali-fora.
Não, cá não se vive sem gafanhotitos.
Sim, eu briso o que li, o que li aos
bocaditos.
Sou isto sem centro, a destempo do intempo
do Tempo.
IV
Milénios há que o muito mar areniza as
arribas.
Isto é tudo um esfarelar, até a luz é
poalha.
A terra fuma-se, sabe-o bem quem cedo se
levanta.
Somos afinal o bornal de quê para quem?
Aquela velha está viva, a minha Mãe não.
Estranhei sempre que aos pobres legassem o
ouro das praias.
Isso – e o cinema das sombras dos pinhais
na estrada.
Isso – e a eterna première da Lua estreando estrelas.
Vem a idade de ver com nitidez o descampado
das coisas.
O melhor é vir vindo ao mesmo Café, sempre
te sabem o nome.
Se com o de teu Pai ele coincide, pois
então melhor, faz sorrir.
E sorrir, com a idade, é pelas horas da
amargura
ao preço-da-(ch)uva mijona.
(Milénios há que o muito mar
etc.)
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