AI
NÃO, QUE NÃO CHORA
Leiria, tarde de terça-feira, 21 de Agosto
de 2012
(Sou apenas coevo do que escrevo.
Só posso ser contemporâneo do que leio.
Ao resto, por essência, não pertenço:
nem sequer ao que sinto, nem sequer ao que
penso.)
*
À lareira do sol, em meu escano do Café da
Rita.
Bebo uma cerveja fria, leio o jornal sem
pressa.
Pela galeria, passa uma mulher dotada de
pogoníase, coitada.
A vida parece ser isto, de vez em quando: o
diáfano lençol de sol sustido pelo leito do mundo, a internacionalidade do
arvoredo içando o grafismo maiúsculo da sintaxe natural, o caixote de betão
onde funciona uma casota de crédito, a necessidade que a Beleza tem de ser
vista para ser-se em beleza, o trapo estampado a negro & rosa de Carlota
Abreu (esta que exala aroma de baunilha à passagem-gueixa), a finitude
assegurada de tudo & mais alguma coisa, a vela da consciência tremulando
recantos de móveis perdidos nos divórcios, a tenacidade melíflua do suor na
sesta, o cravo negro do púbis feminino fazendo-se corvo em descampada praia
invernal, as mulheres & os homens de Arazede (Montemor-o-Velho), Baltar
(Paredes), Cogula (Trancoso), Degracias (Soure), Estreito (Oleiros), Freiria
(Torres Vedras), Gelfa (Vila Praia de Âncora), Hortas (Póvoa de Lanhoso), Ilha
(Pombal), Junqueira (Miranda do Corvo), Luzianes (Odemira), Mamodeiro (Aveiro),
Nabais (Gouveia), Outeiro da Cabeça (Torres Vedras), Ponte do Abade (Viseu), Quinta
das Pretas (Loures), Rabo de Peixe (Açores), Semideiro (Chamusca), Triste Feia
(Leiria), Unhos (Loures), Vilela (Coimbra), Xisto (Arcos de Valdevez) e Zavial
(Vila do Bispo).
Ah sim, pode ser parecida com isto, a
galeria-vida.
Se esquecer não acontecer depressa, dói no
lembrar devagar.
Ou então não dói, é só matéria gasosa para
arder em sonhos.
Ou então romancear (mas com dignidade
lapiseira) a existência de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, por exemplo, com
colaterais lampejos de W. Storck.
Colher do mundo, sem porém da terra
decepá-la, a Grande Rosa.
Inventariar a tipologia dos incêndios: os
deste ano no Algarve, os de Cupido, os da Ânsia, os da Vaidade, os domésticos,
os da Austrália.
Receber ao colo um gato sábio, dele à flor
da mão colhendo o cabelo vivo e rumoroso.
Ser tão-só coevo do que se lê,
contemporâneo do que se escreve.
Dar uma saltada ali ao
Alentejo a assimilar os brancos mais ígneos, os mais ardidos ouros-ares; ou ao
Caramulo, onde o Inverno tempera ainda a malvasia da tuberculose memorial; ou a
Trancoso, onde no dia 1 de Outubro de 1981 comprei um maço de Porto e uma data
de livros do Somerset Maugham a cinquenta paus cada na livraria em frente à
Barbearia S. Paulo; ou ao outro S. Paulo, o Café que à Casa Branca, Coimbra,
nos permite a todos encontrar, pela tardinha, um Salazar que é bom, por ser
Luís e ser quem é; ou à Praia do Pinhão, Lagos, onde fui feliz com a força
toda, nada nem alguém podendo o que for contra isso; ou ao Bairro dos Actores,
na lisbonense Alameda, comer iscas com batatas cozidas à casa-de-pasto daquele
casal transmontano para sempre que há quarenta e picos anos por ali
transmontanava seu interior exílio; ou a casa da minha Mãe; ou à Casa onde ela
ora mora e se demora – ou fiquemos (por) aqui, que um homem não chora.
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