09/08/2012

Rosário Breve n.º 271 - in O RIBATEJO de 9 de Agosto de 2012 - www.oribatejo.pt



Ácido clássico

Prostrado, derrubado e derribado por uma crise ácido-úrica no pé esquerdo, (mal) tenho andado por estes dias do tíbio Verão do ano. De purinas cristalizadas na articulação do dedo maior, é-me inelutável a melancolia da gota, que, por paradoxo, me interdita a pinga. Pareço um squire inglês de ventos e montes uivantes, tipo prosas de Saki/Munro ou Wodehouse, Belloc ou Waugh, ou Wodehouse, Belloc ou Waugh, Thackeray ou James, Fielding ou as manas Brönte.
Para entreter a moléstia, espreito os mosaicos vivos dos Jogos Olímpicos, não recriminando a anemia da participação portuguesa nos mesmos por considerar que todos eles e elas tentaram afinal muito o pouco que afinal podiam – ao contrário dos explorados não desportistas seus compatriotas (isto é, nós), que pouco tentamos o muito que ainda poderíamos, ao menos, tentar. Desligo o televisor porque a visão dos Jogos me deixa macambúzio: a razão é todos aqueles corpos bem tratados se mexerem tanto e tão bem, ao passo que eu mal passo dou, qual pomba coxa de praceta municipal.
Vingo-me lendo em pose de perneta esticada e pèzorro estojado em almofadão. Leio e releio o meu/nosso grande Camilo, o das Novelas do Minho. E o grande príncipe de S. Miguel de Seide, morto e imortal, não deixa nunca de me ser lenitivo, embora jamais deixe, por outro lado, de me quilhar as bossas frenológicas mercê de uma prosódia que enrola pérolas de Língua, ao estilo (é o termo) das deliciosas e viciosas de salão francês que as levavam (às pérolas) à boca molhada de champanhe em mímica a mais lasciva. Por assim dizer.
Banal redundância, eu sei, é postular que o Autor do Amor de Perdição e de Maria! Não me Mates, que Sou Tua Mãe! é um clássico. Claro que é. Mas – que é um “clássico”? Sirvamo-nos da recorrente (e maniqueia, vá lá) dicotomia contraponente clássicos/modernos.
Por mim, estatuo (e não sei se me não estatelo) que a diferença está em o clássico continuar moderno amanhã, enquanto o moderno não passa de hoje se não logra chegar a clássico.
Camilo é, pois, um superclássico. Em uma das tais Novelas do Minho (O Degredado), escreve ele esta maravilha, este truísmo: “Um grande patife lá fora, nunca deixa de ser um grande patriota.” E na página seguinte estoutra inegabilidade: “Não há cousa que sirva de barreira – escrevia o enérgico par do reino Sebastião Xavier Botelho – a certos governadores e feitores para se contentarem com grosso cabedal granjeado boamente, deixando ao mesmo tempo viver os pobres, senão que alguns querem abarcar tudo para si com absoluta exclusão dos outros, atraiçoando, roubando e matando: que de tudo isto aqui há exemplos; o ponto é enriquecerem-se no prazo mais curto, e para este efeito empregam a perfídia e a força… Tem havido ali uma série de governadores a qual deles mais avaro, ambicioso… Cifro-me em dizer que todas as torpezas e devassidões têm ali andado não só desenfreadas, mas autorizadas.”
Geniais ditos. Camilo haveria de ser hoje um mero ex-moderno se o que escreveu ontem fosse bolor hoje. Mas não. Pelo contrário: é tão ingente e fresco esta manhã como pleno de prístina seiva daqui a cem anos.
Pouso no úrico colo as Novelas e descubro que, julgando ter viajado por mão delas ao século XIX português, não logrei afinal senão encravar-me de vez neste triste e gotoso XXI nosso. Porque Camilo me/nos reitera um ditame turístico-publicitário de que ele não podia ter conhecimento mas tinha, por genial instinto: é que os grandes patifes da desgovernança pública, tão grandes e tão patriotas quando na estranja, se gabam agora de “ir para fora cá dentro”. E de cá não saem nem ninguém os tira.
É clássico.

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Canzoada Assaltante