Ácido clássico
Prostrado, derrubado e derribado por uma crise ácido-úrica
no pé esquerdo, (mal) tenho andado por estes dias do tíbio Verão do ano. De
purinas cristalizadas na articulação do dedo maior, é-me inelutável a melancolia
da gota, que, por paradoxo, me interdita a pinga. Pareço um squire inglês de ventos e montes
uivantes, tipo prosas de Saki/Munro ou Wodehouse, Belloc ou Waugh, ou
Wodehouse, Belloc ou Waugh, Thackeray ou James, Fielding ou as manas Brönte.
Para entreter a moléstia, espreito os mosaicos vivos dos Jogos Olímpicos, não recriminando a anemia da participação portuguesa nos mesmos por considerar que todos eles e elas tentaram afinal muito o pouco que afinal podiam – ao contrário dos explorados não desportistas seus compatriotas (isto é, nós), que pouco tentamos o muito que ainda poderíamos, ao menos, tentar. Desligo o televisor porque a visão dos Jogos me deixa macambúzio: a razão é todos aqueles corpos bem tratados se mexerem tanto e tão bem, ao passo que eu mal passo dou, qual pomba coxa de praceta municipal.
Para entreter a moléstia, espreito os mosaicos vivos dos Jogos Olímpicos, não recriminando a anemia da participação portuguesa nos mesmos por considerar que todos eles e elas tentaram afinal muito o pouco que afinal podiam – ao contrário dos explorados não desportistas seus compatriotas (isto é, nós), que pouco tentamos o muito que ainda poderíamos, ao menos, tentar. Desligo o televisor porque a visão dos Jogos me deixa macambúzio: a razão é todos aqueles corpos bem tratados se mexerem tanto e tão bem, ao passo que eu mal passo dou, qual pomba coxa de praceta municipal.
Vingo-me lendo em pose de perneta esticada e pèzorro
estojado em almofadão. Leio e releio o meu/nosso grande Camilo, o das Novelas do Minho. E o grande príncipe de
S. Miguel de Seide, morto e imortal, não deixa nunca de me ser lenitivo, embora
jamais deixe, por outro lado, de me quilhar as bossas frenológicas mercê de uma
prosódia que enrola pérolas de Língua, ao estilo (é o termo) das deliciosas e
viciosas de salão francês que as levavam (às pérolas) à boca molhada de
champanhe em mímica a mais lasciva. Por assim dizer.
Banal redundância, eu sei, é postular que o Autor do Amor de Perdição e de Maria! Não me Mates, que Sou Tua Mãe! é
um clássico. Claro que é. Mas – que é um “clássico”? Sirvamo-nos da recorrente
(e maniqueia, vá lá) dicotomia contraponente clássicos/modernos.
Por mim, estatuo (e não sei se me não estatelo) que a
diferença está em o clássico continuar moderno amanhã, enquanto o moderno não
passa de hoje se não logra chegar a clássico.
Camilo é, pois, um superclássico. Em uma das tais Novelas do Minho (O Degredado), escreve ele esta maravilha, este truísmo: “Um grande patife lá fora, nunca deixa de
ser um grande patriota.” E na página seguinte estoutra inegabilidade: “Não há cousa que sirva de barreira –
escrevia o enérgico par do reino Sebastião Xavier Botelho – a certos
governadores e feitores para se contentarem com grosso cabedal granjeado
boamente, deixando ao mesmo tempo viver os pobres, senão que alguns querem
abarcar tudo para si com absoluta exclusão dos outros, atraiçoando, roubando e
matando: que de tudo isto aqui há exemplos; o ponto é enriquecerem-se no prazo
mais curto, e para este efeito empregam a perfídia e a força… Tem havido ali
uma série de governadores a qual deles mais avaro, ambicioso… Cifro-me em dizer
que todas as torpezas e devassidões têm ali andado não só desenfreadas, mas
autorizadas.”
Geniais ditos. Camilo haveria de ser hoje um mero
ex-moderno se o que escreveu ontem fosse bolor hoje. Mas não. Pelo contrário: é
tão ingente e fresco esta manhã como pleno de prístina seiva daqui a cem anos.
Pouso no úrico colo as Novelas
e descubro que, julgando ter viajado por mão delas ao século XIX português, não
logrei afinal senão encravar-me de vez neste triste e gotoso XXI nosso. Porque
Camilo me/nos reitera um ditame turístico-publicitário de que ele não podia ter
conhecimento mas tinha, por genial instinto: é que os grandes patifes da
desgovernança pública, tão grandes e tão patriotas quando na estranja, se gabam
agora de “ir para fora cá dentro”. E de cá não saem nem ninguém os tira.
É clássico.
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