CARDÁPIO-EM-RECORRÊNCIA
Leiria, manhã de domingo, 19 de Agosto de 2012
I
Manhã de frescura a mais humana: por
enquanto fresca, humana por enquanto. Um espelho-de-água em círculo serve de
olho à terra mirando o céu. Arvoredo jucundo em florão explodido: consolação da
pedra que é preciso partir com as mãos para que o pão brote. Gente sem pressa e
rara pèriplando-se singela e singular: ilusão (alusão, também) do plural coiso
da vi(d)a mundial. Metais, plásticos, travessas com bolos de sal (outros, de
açúcar), chávenas, jornais quase honestos, um que outro cão:
cardápio-em-recorrência da atenção.
Isto é o deserto – e não é o deserto.
Vencer não é ganhar: é vir-ser, é vir-a-ser. Sobre tampo azul escrevo a
preto-em-branco: isto existe para mim, que não existirá se e quando reler, que
não existirei. Vir-ser-a-ser isso: um ter-sido em prol do (d)existido.
Domingo, manhã cedo. O primeiro pano de sol
limpa já o altar do mundo, esse paganismo sem livro de oração. As coisas estão
no serem imaginadas por o cineasta íntimo a que outra câmara se não concede que
a da Língua. Eu pelo menos não tenho outra. Dominica-se a alva cumprida: o cão
preto penetra o espelho-de-água, esfuzia patadas no vidro líquido, óptico, da
estrutura circular, turva o reflexo do céu, é um rei de coleira.
Ser-me-ia preciso (mas, sinceramente,
sê-lo-ia deveras?) mostrar a Cesário Verde, arrancando-o à morte e ao gás dos
candeeiros da Lisboa anoitecida, esta Leiria, este século absurdo que faz a
manhã de domingo, o instante do cão preto no espelho-de-água, pagar-lhe talvez
um café ou um quartilho gaseificado, vê-lo a ler Pessoa em cada objecto fingido
vivo.
(Isto que enfim o fim nos abrevia, é o
fugaz gás que vai da ontologia à oncologia.)
II
Ânfora
de cânfora – silhueta da mulher
que
veio ao pão de brancos chinelos.
Não
a desejo, que os anelos
resultam
jamais no que se quer.
É
branda, a luz – e suave e meiga:
na
manhã concisa, corporiza a calma.
Barra
sobre o pão do mundo-em-alma
’ma’spécie
de nata (ou então de manteiga).
Rosna-me
o ’stômago, vou ter de comer.
Fumei
refumei já hoje eu muito.
Fatia
de queijo, outra de presunto
e
uma chávena mansa bem cheia de chá
são
coisas já prestes, aprontadas já
à
meia manhã vivida a viver.
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