07/08/2012

IDEÁRIO DE COIMBRA - 28 (alguns trechos) - Coimbra, terça-feira, 29 de Junho de 2010


© DA, 18h27m de 16 de Dezembro de 2011




28. ESTA NOSSA MÃO ESQUERDA

Coimbra, terça-feira, 29 de Junho de 2010

(…)

Vesti hoje uma camisa muito lavada e muito fresca. Sinto-me bem dentro dela. Deveria haver camisas assim para o pensamento, sobretudo quando o pensamento anoitece logo de manhã. Não é porém tal o caso, não hoje, não esta manhã.

(…)

Pessoa, de Lisboa (4 de Setembro de 1916), escreve a Cortes-Rodrigues isto:

Se V. tem estado desterrado, eu sem desterro também o tenho estado. V. não imagina. Tenho passado estes últimos meses a passar estes últimos meses.


(…)

Três mulheres vêm bicar aO Nosso. Uma, morena no tom exacto da morenidão das brancas, vem a bordo de um vestido de alças peça-única azul com flores vermelhas. Belíssimo conjunto: pele solar e vestido leve. Tem uma tatuagem em baixo, no país que decorre entre o joelho e o artelho direitos. Deve ser bom conviver com tal filete de anchova.

(…)

(Ela fala-me em sonhos. Nos meus durante, dos dela que sonhou.)

(…)

(Esta minha mão esquerda, órfã de escrita e de as habilidades outras quase todas. Estrela pobre, coitada. Segura o caderno, como se acalmasse o cavalo do meu coração largado pela irmã dextra. Vive na sombra. Remove cera do ouvido correspondente ao hemisfério dela. É como aquelas mulheres caladas, casadas, que de vez em quando vemos passar em sonhos e pelas ruas. Mas é a esquerda, mas há a direita – pelo que aqui, tabelião notarial, certifico que uma desgraça nunca vem só.)

(…)

(Pertenço todamente a um círculo de lírios. Janto em casas-de-pasto de principesca silhueta, o garfo empunhando à guisa de caneta. A minha afeição é doida. São malucos os amores que tenho. Sou um campo diário à espera de flores nocturnas. Oh sim, eu anoiteço! – Isto são só versos, caga nisso! – Mantenho em casa lápis como antigamente gatas, retratos, canecas de faiança, psychés. Tu és diferente, pertences à Fiscalização dos Pertences & Deveres. Tu não és feliz, mas parece-lo. A rosa tatua a tua boca em lacre. És bonita, pertenceste-te & deveste-te a outros homens – não, querida, não te serei o próximo. Sou um poetinha coimbrinha, tão-só isso/isto. No Campeonato Mundial de Futebol, há corações batendo uruguaiamente. Sou desta freguesia sem clientela. Sangro resinosamente o meu mijo, o meu leite, o meu suor, algumas lágrimas oblíquas. Chamo-me Daniel mas não sou o meu Pai. Ela, não tu, fala-me em sonhos. Tu sonhas-me em falas. Sou o resineiro/engraçado/engraçado/no/falar. T-shirtamente é o despido coração entrelinear de quantos cadernos até hoje borrei de tinta asterisca. Predadores sexuais algaraviam golpes-de-rins. Engaiolador de borboletas, leitor comovido de Luís Filipe Costa, oh! também me assiste a lembrança de certo contramestre pescador da Leirosa chamado Damião, dilecto amigo do falecido Acácio Buto, pai do Paulo da Adémia (o Acácio), cuja generosidade (cuja, de Damião) era tão assombrosa, no mínimo, quanto a do clínico pombalense doutor Adelino Correia. Olham quanto se deitam as pessoas! Olha-me quantos prédios encaixotando vidas! Olha que rotina quer dizer rodinha! Olha o painço sendo ínsuo! Olha-m’ esta! Uma camisola verde, passando a praça, avermelha o meu olhar-te. Tenho saudades do futuro que não chegaste a ser. Também, sei-o tão bem, o-ser não cheguei a. Calma. Isto é tudo tão desperdício de estrelícias! Isto de haver mais poetas do que versos – é uma merda compreensível. Mastigo-te devagar trincadinhas de silêncio. Sou quem se comove ante um taxista coreano. As gajas lambedoras de Salazar cursavam necromancia. Um mester é um mistério, como todo, abrenúncio!, o ofício é santo. E é oficial a tua santidade. Derivado tenho pela Sé Velha, pela Rua das Azeiteiras, pelo arrebol tímido do meu coração-choupal, percebes tu que te não digo, pele? O senhor João Sousa, das bombas de gasolina funcionário, bebentranha-se uma coca-cola. É de olhos claros como rabanadas feitas de água. Tenho de comprar-te uns sapatos, que me descalças quanto te desejo. Esta demora de corações na mansarda que ando sendo! Molhada vagem de buganvília-baunilha em meu suburbano sexo! Oh Caldas da Rainha, ehlah! Homens de lepidóptero azul encalmado, sás-de-mirandas iníquos, ínvios, inócuos, inoculados – travessam minha transversalidade onzeneira, danados! És cá de Setúbal, olá, és cá de Setúbal? Paquiderma-te masturbatoriamente agora, anda! Se eu quiser, cometo-te versos agora, anda! Se eu quiser, cometo-te versos e partes pudendas, aviso. Mui gloriosa é a fatalidade sapateira dos mutilados de pernas do Vietnamoçambique. Pede-me que pare, por favor!)

*

Estou algo órfão de amores que foram vivos.
Conheço-me em serras inominadas sabor a queijo.
Sofro este que aquele desejo.
Um pouco de bacalhau tira da boca o gosto a cravos.

Tenho um tabuleiro de impulsos no meu ól.
Manjerica-se muito, a minha vizinha atordoada.
O mais que Cavaco Silva pode, não pode nada.
Uma fenda abre, plúmbea, a nuvem anil.

Ramalhetes violentos encimam cor-florões.
Tenho uma tia azul, não digo tal.
É triste não poder a vida empadamente.
A vida não é Toyota, não veio para ficar nem ficou.

Há ainda pertences do meu Pai por toda a casa.
Aquilo da Mãe-Viúva cheira sempre a demoras.
Éramos todos para ser felizes, mas a Senhora da Agonia.
Fiz já quatro quadras, ganhei o dia.

(…)

Shadows-heart, coeur-d’ombres.
Às vezes um amigo é quanto basta d’ombro.
Outras, as filhas licenciam-se, tiram a
carta de condução de motas 125.
Pinhais molham estradas de fragor húmido.
Musgos cerceiam a fala, pode ser terrível
estar vivo na antemão da sombria cor-coração.

(…)

Aquele homem tem de ser
um par de olhos azuis.
Mais castanhos são os meus,
aquiesces e anúis.

Nã’ redargas p’las ilhargas,
q’o ti’ Chico não conhece
a obra do Llosa que é Vargas
– nem sequer lhe apetece.

(…)


Procura-me do lado sudoeste da nossa vida,
eu mal existo mas o sudoeste existe bem.
No carnal jardim da noite, as palavras são ossos.
Bandeiras de Portugal fremem excitações revisteiras.
E o nosso falar amoroso, o mais é anti-caspa.

Lojas esperam o senhor freguês com senhora e criança,
a Kim Wilde tirou um curso de floricultura,
o meu Tempo precisa de uma caiação à maneira
(o teu, também) e
andamos para aqui tristes sem razão maior.

Tenho de ir ver a minha Mãe e Vitorino Nemésio,
a Colecção Chinesa de Camilo Pessanha e as gatas,
tenho tanta coisa, que nada ou pouco tenho,
um dia destes, no Café Abadia, começo a falar
sozinho, ’inda me põem na rua ou assim.

Temos todos um tio bêbado algures,
alguns acumulam a bebedeira c’América,
os dólares andam pela hora da morte,
os tios também – e nós também, mas
enquanto ávida à Esperança,

que é uma rapariga que só leva vinteuros
e o resto também leva, faz parte.
Eu gosto de Duran Duran e não tenho vergonha.
Em Lisboa, chamam Saca-Rolhas ao Cristo-Rei.
E nós somos a Metástase Futura do Cancro Salazar,

toma lá este Presente. Hoje, sentei-me.
Andei pouco, dormi à tarde coisa de meia hora,
vomitei o caldo de feijão-frade em um relvado
propício, derivei por esquinas aleijadas
como crianças africanas e escrevi versos.

Como é que se chamava o gajo que cantava
nos Human League? E a bichona dos
Dead or Alive? S’isto não é Alzheimer,
vou ali e já não venho. O Tony de Matos
chegou a ir a boîtes a Moçambique, eu não.

Procuro-te do lado nosso da vida nordeste.

*

O Homem-Pessoa, a Vida-Fernanda.

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Canzoada Assaltante