DIAS
BONS, É PARA O QUE VIEMOS
Leiria, manhã de terça-feira, 21 de Agosto
de 2012
– Bom
dia, olá, então que fazes tu por aqui?
É pergunta muito mais grave & séria do
que parece desmenti-lo a formalidade do lugar-comum cumprimentador. De facto:
que tenho eu, tens tu, tem ele feito, que faz ele, fazes tu, faço eu – por
aqui?
Aqui é sempre o aonde a que chegamos, através de ondes móveis, depois do nascimento
ignorante até ao ignorado momento (ou memento)
da morte.
A tal pergunta (melhor: a tal questão, a tal inquérito), tenho respondido com a porção da humana precariedade
que me coube: tinta e lápis em cadernos inofensivos e mais quietos do que
inquietadores.
Exemplo fácil: no café da Rita (manhã tão
cedo, que há ainda galinhas a mudar a cabeça para debaixo da outra asa por
só-mais-um-bocadinho), duas mesas além da minha, uma senhora oficial de
costura. Ela é, por assim dizer, o que “faço” aqui. Isto seja: retratá-la em
superfície (pois que não sou, nem para lá caminho, um Henry James).
Está de pequeno-almoço, ela. É, digamos, de
meia-idade (outro lugar-comum: no desconhecimento provisório da idade total,
como sabemos que metade está já cumprida?). Partilha com a filha, que com ela
vi já umas duas vezes, dois carbúnculos verdes incrustados no norte do rosto,
isso que Camões rimava com abrolhos.
O decote é picotado de sardas, algo à maneira dos grumos do Nesquik à flor do
leite, lá na infância de cada um(a). Trata-se de um bom decote para quem já
dobrou o Bojador do meio século. Esta manhã, primou por um vestido sem mangas
muito luminoclaro: um estampido alfaceado que lhe assenta em muita higiene e
grande estesia. O pescoço é já estriado de lineares marcações
estratogeológicas, claro, mas é escrita que lhe não afecta (antes confirma, a
meu [escre]ver) o colo de ganso próspero. Mais do que o decote, mais do que o
chispar esmeraldo-faiscante dos olhos, é de erótica singeleza a cabeleira
húmida do duche recente: massa de fruta outonal em aparato de algodão-doce. Os
ombros são beijáveis sem dureza alguma, por natural natureza se estendendo a
oscularidade aos braços (sardentos também), um dos quais grua agora a larga
chávena de café-com-leite aos lábios, cuja polpa e conformação me levam à imagem
do alperce oblongo deitado. O outro braço termina em mão diferente (posto que é
canhota, a senhora). Miga’sfarela essa mão, distraída, um resto de croissant a
que o recheio de ovo-doce já não acode.
Ei-la ora que pede o café terminal, ei-la
que o obtém, ei-la que o vai tomando entre passas do melhor cigarro do dia, o
primo. Viajo descendo:
é de circunvalação gástrica suficiente, nem
escanzel nem estofal; o tojal púbico superintende em convexa concha ao
baixo-egipto do gino pórtico; a partir daí, atadas pela cintura sólida mas
dúctil, descem-na pernas que a consolidam no precário negócio que é existir de
pé mesmo quando sentada. Agosto permite-me a visão de uns pés nascidos para o
esplendor da nudez, reiterada aliás pelos atilhos de ouro das sandálias mais finas
a que já assisti na plataforma ibérica.
Se o Quim Jorge me dissesse que
– A
filha é melhor –
eu só lhe rosnaria que nem por sombras,
quanto mais à luz comparadas.
Meia manhã cumprida quase já, rosno-me em
surdina a mim a falsa certeza de que um dia destes me chego a ela e lhe pergunto
sem menos nem vergonha:
– Então
bom dia, que me faz a senhora aqui?
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