NUNCA
ME IMPORTO DE DAR LUME
Leiria, manhã de quinta-feira, 23 de Agosto
de 2012
Espagíria pirobologista da manhã nova
esperecendo: é outra que não a de ante-ontem a luz, à hora. Branda e
parda/parada, e para mais sem pomífera arboração, a alba é
ala-álea-alma-alameda aluída. Nublado como olho de cego, o sol é nado tíbio. Já
ocorre a pombinha de desgrenhada asa direita. Traz namorado hoje. Compro-lhes
um bolo-de-arroz. Alegria à galeria: mesmas letras, que tenho já companhia. Há
quem lhes chame “ratos com asas”. O meu querido Amigo Tó-Luís chama – mas como
ele também é a favor do Aborto “Ortográfico” e dos recos do FêCêPê, ’tá tudo
dito. Dizem que há animais que não metabolizam o açúcar. Em 1988, eu morava não
sozinho na Lousã. Havia lá, em posição central, um café simpático chamado
Pagelou, salvo erro. A atracção circense era o cachorro da casa. Açucarómano,
ficava doido quando o freguês sacudia o pacote. O do açúcar, claro. O número
era certinho: o cão pasmava sentado ante a pessoa até que ela, mesmerizada,
soltasse o resto do acepipe. Com as patitas dianteiras, o animal separava papel
de iguaria. E lambia, lustralmente lambia, a vitualha-mor de sua predilecção. Naturalmente,
estava quase cego: um diabeticão. Espero que as pombas metabolizem. Comer,
comem: já me deram o (bolo-de-) arroz quase todo por papado, salvos sejam o
Vaticano & o Avinhão.
“Espagíria” é nome antigo para química e/ou
alquimia.
“Pirobologista” é nome alternativo a
pirotécnico.
“Esperecer” é verbo aprendido (não vem no
Dicionário da Porto Editora, 6.ª edição corrigida e aumentada) em António
Patrício (na peça Pedro, o Cru) – e
refere o fenecer, o estiolar, o ir-se-da-vida de remo(r)ta freira do conimbricense
Convento de Santa Clara (-a-Velha) à época de Inez de Castro, póstuma esta já
no entrecho do drama de Patrício.
“Pomífera” é genesíaca dádiva fruteira.
E “arboração” escrev’inventei eu: se não
existia, passou a.
Passa um velho de calças de bombazina. Há
quanto tempo eu não via bombazina! É fazenda que, fazendo tempo, me faz de
torna-viagem à infândistância. (Mas, também, quase tudo me recua a ela.)
(Momento: do rebordo direito da mesa – as
pombas estão do lado esquerdo, o da Avenida) caíram migalhas. Uma formiga acaba
de ganhar o dia. Vejo-a como se de helicóptero, eu.)
Com isto tudo (que nada é quase), perdi a
bombazina e o velho. Paciência: novos números me acorrerão à pluma de prata que
me ofereceu Graça, dia oitavo de Maio pretérito.
Como aqui na Rita somos sempre quase os
mesmos, a minha literatura encaderna quase sempre a mesma numeração
artístic-ó-foda-se. Mas não tem mal: gera, julgo, o gerânio da costumeirice em
sub-vivência.
Eis-me recompensado: cavalheiro & dama
a duas mesas da minha (a mesma, onde eles agora, a que esteve a boazona
costureira de terça-feira, 21, pela manhã). Ele é um espectáculo: sósia
perfeitinho do William Faulkner. A mesma cabeça e o mesmo bigode e a efígie
mesma daquele velhinho do Kentucky Fried Chicken, espécie de pai-natal que foi
ao frango. Homem para seus sessentas à vontade. Sapatilhas de pano-cru azul sem
atacadores, joanete oblige. Camiseta
vermelho-forte, ganga pernal. Escorreito, quase magro, de uma elegância sulista
à la plantador de algodão
esclavagista. Mas também ele, o confederado, se desconfedera daqui para fora
amaila a mulher, de que não deixo registo porque isto do escrever não pode ser
só inventar, olarila.
(Ai não pode? Ai não pode? Então:)
Terna, passadiça
vida costumeira,
que só desperdiça
a gente ronceira
que ao simples viver,
por acostumado,
valor não dá grado,
que o devia ter.
Se intimamente o leitor for cantando as
camonianas Endechas a Bárbara Escrava
à maneira de Sérgio Godinho, tem a estância redondilhística-menor supra por
justificada. Mas adiante na manhã: o Faulkner agora mesmo assim p’ra mim:
– Ó
chefe, não se importa de me dar lume, fachavôr?
Maravilha: O Som e a Fúria neste caderno. E já vamos em dois Autores Maiores –
o nosso António Patrício e o universal William Faulkner (cujo apelido de
nascimento era Falkner, sem U). Lá vai ele de vez agora. Só voltou atrás por se
ter dado sem ponta nem porte nem conta nem sorte de lume.
Já agora, mais digo que outra leitura,
acabada ontem à noite a de Washington Irving, me está deliciando: a de Lettres de mon Moulin, do gentil
Alphonse Daudet. Foi exemplar do meu Irmão Jorge, que à época – escreveu ele no
pórtico – era
JORGE
ABRUNHEIRO
N.º
57 TURMA E
4.º
ANO (complementar)
Já não é. Morreu a 23 de Maio de 1986, pela
manhã. Outras notas deixou na mesma página, a esferográfica azul estas (as
outras, a preto):
SELO
15.00
Bilhete
(duas)
3
Fotografias
Boletim
Sanidade
Pat(ilegível)
Um
postal dos CTT
Boletim
de Matrícula (299)
A lápis, tempos depois, escrevi eu
DANIEL
ABRUNHEIRO
N.º 6
TURMA H
10.º
ANO (ESCOLARIDADE)
Coisas assim.
*
10h00m em ponto.
O país local mexe as patitas no ar como o
insecto de costas de Kafka. (Tão próximos, Kafka e Pessoa, não?)
Cavalheiro tisnado de “vráceléte” de
lat’ouro esbeiçado ao peludo pulso direito. (“Peludo” pode ser dito “veloso”;
ou, como quanto àquela mulher passante neste caderno-galeria de terça-feira,
21, à tarde, “pogonóforo”.)
De modo que me distraí – e
o gajo antecipou-se-me de caminho & carrinho ao jornal do dia. Agora, só à
tarde.
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