31/07/2009
Rosário Breve nº 114 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt
O da Joana
Temos à porta o mais estúpido dos meses, Agosto do freguês. A pimbalhada aborígene, de chinelos de napa e pêlo no sovaco a mandar farpas de cheiro, boquiabre-se perante as novas rotundas dos últimos onze meses mandadas rasgar pelo cacique local.
O Tony anda por aí a fazer carreira com o filho, o Miguel com K. Diz-se que a gaiata do Bloque de Esguelha, a Joana Amaral Dias, esteve e está vai-num-pé-vem-noutro para ir brincar às meninas deportadas no recreio do partido daquela figura celebrizada em pau por C. Collodi, o mesmo que mandou o Gepeto ver se em Bruxelas lhe arranjam alguma Marinha Grande.
O poeta de Águeda, o ex-era-para-ser-PR, ainda lhe deixou vago o lugar na Assim-boleia da Abúlica. O Tony continua por aí com o filho. O Arlindo de Carvalho, inesquecível e esquecido ministro da Saúde do Cavaquistão, foi resgatado da dormência da reforma por causa de não sei quê a ver com aquele que foi precedente do Spórtãe como o San Tanga, o Roquette das lentes fundo-de-garrafa.
O Tony não vai, mas se fosse cantar a Londres, ainda cantava mas era para o Valium Hás-de-Vê-lo, a julgar pela plateia VIP-vaporub de cá da estriqueira.
Falando agora de coisas não propriamente portuguesas, na Madeira andam aos tiros aos zepelins. Mas o balão maior ainda está por abater já lá vão uns bons maus trinta carnavais de todo o ano. Assim sendo, isto por cá é o da Joana porque já chagámos a Madeira. Amaral ou amoral, Tony ou Mickael, a prioridade não é o futuro, é fazer um Pavilhão Atlântico em cada parvónia para o filho do Tony cantar à luz dos briquetes-allumés da quarta geração de alcochetes, mais rotunda aqui mais Joana Amaral Dias acolá-lá-lá.
30/07/2009
Posse e Pessoa
UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (24)
UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (23)
28/07/2009
UM POUCO ANTES DE AMANHÃ (22)
22
Pombal, entardenoitecer e noite de 22 de Julho de 2009
Anda magro o Verão como magras andam as vacas.
Economia e meteorologia casaram-se cedo e a más horas.
O lirismo existencial segue muito vivo segundo o Correio da Manhã do dia:
homem de 20 e poucos anos colhido mortalmente pelo Intercidades junto ao Fogueteiro, ontem de manhã;
violador de 16 anos achado e detido em casa, no Casal de Mira, Amadora;
cinco encapuzados com caçadeiras assaltam e agridem um empresário na Carvalhosa, Paços de Ferreira;
Oliveira e Costa, do BPN, denuncia amigalhaços das off-shores, entre os quais Arlindo de Carvalho, antigo ministro da Saúde do Cavaquistão;
junto ao nó de Donas da A23, Fundão, despiste de ligeiro mata dois e fere três;
Viseu, três homens que cultivavam e traficavam droga já não traficam nem cultivam por causa da GNR local;
perto, em Lamego, um gajo de 21 anos e 119 charros foi apanhado com a idade e com o stock;
Lisboa, também um gajo, também de 21 anos, mas coca em vez de chá-mon (13,23 gramas dela);
um morto e um ferido grave após colisão de dois ligeiros na EN328, Setúbal;
homem de 49 anos retirado já cadáver das águas da barragem do Monte Clérigo, Almodôvar, em princípio sem indícios de crime;
irlandês de 40 anos caçado momentos depois de roubar por esticão mala a uma senhora portuguesa na Avenida Tivoli, Vilamoura;
disfarçados de turistas em chinelos e calções, pelo menos quatro mânfios gamam pertences em quartos de hotéis e apartamentos de Albufeira, Algarve;
cinco dias, cinco assaltos: toxicochico de 32 anos dizia-se portador de SIDA e apontava seringa mais faca, um pouco por todo o lado;
agente da PSP do Porto, que duas vezes emprenhou entre 2002 e 2005, vai receber 21 mil euros, mais retroactivos, em subsídio de turno e patrulha de que estava a arder desde então;
viva a vida, enfim e portanto.
27/07/2009
Da Pessoa Plena de Imagens - IX e X (conclusão)
Da Pessoa Plena de Imagens - VIII
Da Pessoa Plena de Imagens - VII
26/07/2009
Da Pessoa Plena de Imagens - VI
Da Pessoa Plena de Imagens - V
Da Pessoa Plena de Imagens - IV
Da Pessoa Plena de Imagens - III
Da Pessoa Plena de Imagens - II
Da Pessoa Plena de Imagens - I
25/07/2009
Um Olhar Uno - fotografias de Sandra Bernardo em exposição no Bodo 2009 de Pombal
Um Olhar Uno - fotografias de Sandra Bernardo em exposição no Bodo 2009 de Pombal
Um Olhar Uno - fotografias de Sandra Bernardo em exposição no Bodo 2009 de Pombal
24/07/2009
QUANDO EM COIMBRA, VISITAI O CHOUPAL, EM VISEU A SÉ ou Entre as Mãos e as Aranhas, Cavalos Correm os Músculos do Rosto
Estádio Olímpico da Pedrulha ou Quintal da Casa de meus Pais
(em 7 de Junho de 2009)
QUANDO EM COIMBRA, VISITAI O CHOUPAL, EM VISEU A SÉ
ou
Entre as Mãos e as Aranhas, Cavalos Correm os Músculos do Rosto
Pombal, entardecer e noite de 23 de Julho de 2009 (com ADITAMENTOS da tarde de 24 por ocasião da dáctilo-composição final)
A superfície das águas é acessível por os olhos dos outros: o crespo mar dos verdes, a lagoa fria dos azuis, o molhado pardal dos castanhos, em os negros a noite dos rios.
Os animais apresentam também esta humanidade, esta paleta.
Certas cabeças têm algo de estrela, atiram-nos em cosmos a pessoa que trazem dentro.
Entre as mãos e as aranhas, ninguém deixará de reconhecer a irmandade que as clona.
Cavalos correm os músculos, assim gaivotas todas sal patinham pela língua à boca da praia.
Fenómenos como tais são notícia quotidiana da nossa vida, a qual quotidiana é também.
Muitos microrganismos trabalham em profusão em prol das condições. Se mais sensível sou a receber a fremência do vento nas árvores, não significa que despreze a maré dando nas madeiras pintadas de nomes de santos e de netos, por esses cais merencórios do meu País. Algumas cores, fusão de animais e nomes de gente-mármore, concurso da memória em toda a base de raciocínio, vigília da gramática, correnteza de janelas com vasos vermelhos.
(O NOSSO OLHAR NA RUA – JANELAS – VASOS VERMELHOS – MULHERES – JANELAS)
Sempre um rio, a palavra rio por ele sempre, como nunca um rio declinando a nossa atenção, a tua vida, tua sombra entre macieiras vigiadas por corvos e ciganos e leis da cidade e lavadeiras.
(QUANDO EM COIMBRA, VISITAI O CHOUPAL)
Quanto tempo te viverei?
Quanto tempo te viverás?
Entende-me: se fundo músculos, cavalos, pardais e lagoas, se refiro barcos e firo marés, se estou vivo à margem do teu rio: se o vento nos dá as árvores e nos abre as ruas, se já não temos medo, se nos amamos em vida.
Vítima marítima, coração terreno nosso.
Fogueiras como rosas rubras ajardinam a noite dos acampamentos, tomam alimentos quentes os bárbaros acampados além dos canaviais
(OS PÉS DOS CANAVIAIS METIDOS NO RIO COMO OS OLHOS DAS PESSOAS BÁRBARAS),
sem que os toque a parafernália de papel dos poetas e dos cobradores de impostos.
Antigas feiras frias luzem de crianças
(CADA QUINTAL ESTAGIA UMA CRIANÇA OLÍMPICA PARA NADA)
antes da tristeza
(AS CRIANÇAS ANTES DA TRISTEZA AS CRIANÇAS ANTES DA TRISTEZA),
espíritos-santos de louça encarnada
(O NOSSO OLHAR NA RUA – JANELAS – VASOS VERMELHOS – MULHERES – JANELAS)
debruada a dourado entre carrosséis, churrasqueiras portáteis onde a Mãe verifica se o frango traz ou não duas patas e bêbados de furiosa alegria popular, esses sim tristes
(AS CRIANÇAS ANTES DA TRISTEZA AS CRIANÇAS ANTES DA TRISTEZA).
Fabulosos caminhos-de-ferro levam ingleses de colecção-vampiro a campos verdes patrocinados por árvores descomunais, que solares seriam se tanta névoa não fosse a condição natural da Grande Ilha.
(MAS A GRANDE ILHA É A INFÂNCIA)
Entretanto, em outra actualidade cavalheiros maduros aborrecem-se educadamente ante cálices de anis
(CAPILÉ PARA AS CRIANÇAS OLÍMPICAS, ANTES DA TRISTEZA, ANTES DA TRISTEZA),
na praça calçada clocam as mãos minerais dos cavalos, fumo surge de dedos apontados ao céu, uma mulher traz peixe à cabeça, o último polícia pensa numa mulher casada por razões económicas com um pouco de amor à mistura.
Documentos enraízam a disciplina, a ordem de trabalhos que vivos a mortos faz suceder em harmonia, algum pranto ou alguma indiferença embora na transmissão da estafeta.
Saúde amarela é a das janelas acesas
(O NOSSO OLHAR NA RUA – JANELAS – VASOS VERMELHOS – MULHERES – JANELAS)
além das que ocorre a tragicomédia da festividade familiar, o código de humor que é o ADN de uma casa
(QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA QUALQUER CASA),
a espessura do Avô, a Mãe capital, o xarope de groselha
(ACABOU-SE O CAPILÉ ESTA TARDE),
a pastelaria profusa de manufactura caseira, a grande ave assada devagar em forno a lenha. Pátina de geada açucara os relvados corridos ao longo pelos viandantes isolados da cidade
(QUANDO EM COIMBRA, VISITAI O CHOUPAL)
(QUANDO EM VISEU, VISITAI A SÉ),
cujos corações aldeões são o motivo da filosofia, dos preceitos domésticos
(A MENINA VAI ESTE ANO PARA A UNIVERSIDADE, O SENHOR BARBOSA ESTÁ COM UM CANCRO),
do pentagrama tragicomediográfico, das leis e da higiene.
Rubis altos em veludo de montanha
(A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE A NOITE)
marcam os casarios eólicos, a labareda horizontal da raposa, a cor dos olhos da raposa de dura água feita, a mágoa interior de tudo não ser presente a um tempo descritor.
Muitas vezes, na nossa solidão comunitária
(OS NOSSOS MERDOSOS CASAMENTOS, OS NOSSOS FILHOS DE OURO, O NOSSO FUTURO GALINÁCEO, A ÁRVORE GENEALÓGICA E AS OBRAS COMPLETAS DE JÚLIO DINIS ENTRE TUPPERWARES DOS ANOS 70 QUANDO AS SENHORAS FAZIAM REUNIÕES PARA OS – tup - E AS – obras jd - VENDER)
somos todos formigas de corredor de hipermercado, por onde projectamos a avaliação, o desejo, a posse, a medida, a decisão. Muitas vezes, não fundimos a nossa infância
OLÍMPICA
com o Sol que faz, a galeria de refrigerantes
MAS ACABOU-SE O CAPILÉ, AGORA SÓ LÁ VAMOS COM GROSELHA
com a manhã dos laranjais – mas está tudo lá, a partir das circunvoluções cerebrais
BRAIN DAMAGE BRAIN DAMAGE BRAIN DAMAGE BRANCO DAMASCO BARCO DAMASCO.
Freiras e leitores conciliam os olhos com a cera, a boca com a madeira, as mãos com o couro, a pele com o bolor. Momentos eternizados pela música
O CHOUPAL NÃO VOS PARECE UMA ESPÉCIE DE SÉ NATURAL?
ajudam ao movimento das instâncias íntimas. Cabeleiras em chamas bifurcam Paris, Oslo, Vancouver, Rosário, Port Arthur, a Cidreira.
AJUDA-ME A PÔR CORES NISTO TUDO FORA DE NÓS.
Rosário Breve nº 113 - O Ribatejo - www.oribatejo.pt
Sonho de uma Manhã de Verão
Manhã muito cedo. Primeira fímbria de luz azul-cinza. Clarim do galo. Chilreio vegetal de passaritos. Rumor de brisa nas oliveiras, no pessegueiro do pátio. Do chiqueiro dos bacorinhos, o aroma são da cama de estrume e lavagens. Despertamos. A rádio passa Fausto Bordalo Dias. Bons-dias. O locutor diz um poema popular: “Ó penas, não venhais tantas, / Vinde mais poucas e poucas: / Vinde mais bem repartidas, / Dai lugar umas às outras.”
Levantamo-nos. Ao lume, café feito de fresco. Fatias largas de pão de centeio. Manteiga, marmelada. Uma tira de toucinho encarquilhada na sertã. Um pepino crucificado em sal. Uma maçã poderosa como um reactor de açúcar. Hoje não há Lopes da Mota nem Freeport. Ajudamos o padeiro a carregar de lenha o forno artesanal. Hoje não há Dias Loureiro nem Arlindo de Carvalho. O peixeiro buzina sardinha a estalar de prata viva. Compramos um quarteirão dela. Nada de Oliveira e Costa, nada de fazer o 9º ano com 373 negativas. As nossas mulheres riem-se no quintal, algum disparate nosso as faz rir enquanto encestam o pimento, a alface, o tomate, a cebola. Não, hoje nada de siglas, PGR, PM, PR, PSP, GNR, PJ, ME, OA. Nada de Marinhos, de Bibis, de Linos, de pessoas que ficam cegas por terem ido ao hospital. Já o carvão arrebita rubis no meio bidão deitado. Soltamos o cão da corrente, deixamo-lo ir marcar de ureia tudo quanto é couve e poste. Nada de Sócrates com cheque para o dentista, nada de brasucas de terceiro escalão para o Benfica, nada de histerias farmacêutico-grip’A, nada de donas-Brancas por tudo quanto é lugarejo, nada de senhoras-de-fátima fosforescentes em tabliers forrados de pêlo sintético. Abre-se um clarete levemente agulhado de moscatel, serra-se a boa broa, lança-se os dados de uma mão-cheia de azeitona retalhada. Nada de sangue homossexual nem de sangria hetero, zero de risco ao meio do mais-que-Deus-ubíquo Dr. Francisco George, nada de volta do PCP à clandestinidade por ordem do Bokassa da Madeira. Alegria sem Alegre. “Quem a mim me ouvir cantar / Cuidará que estou alegre: / Tenho o coração mais negro / Que a tinta com que se escreve.”
Nota: a excelente imagem do "Bokassa da Madeira" foi colhida n'A Esquerda da Vírgula, com a devida vénia.
23/07/2009
Nisto que Digo, Não
© Garry Winogrand
New Mexico, 1957
Souto, Casa, noite de 22 e tarde de 23 de Julho de 2009
Nisto que digo não procures, peço-te, um sentido plano como nos artigos notariais, mas uma música se puderes, ou, se puderes, um filme.
Sob um molhe de madeira entrando mar adentro, noite na praia do tamanho do firmamento, por exemplo.
Noite que digo sempre cada manhã, onde o amor arranja sempre maneira de entrar como a humidade, adentro o mar os barcos.
Nada de complicado, o que um homem se diz invocando a pessoa de vidro perante.
Revistas que eram do jovem quando breve homem de outro século juncam as caixas de papelão pelas sombrias zonas da casa adulta, catálogos, horários de comboios que não passam já senão través algum sonho, algum campo.
Muito mental é a criança dura como o milho e como o sol amarela, essa que sobe à boca quando no café cumprimentamos e do tempo que faz falamos.
O senhor Smith tem um quiosque de cigarros e magazines e caramelos de café e lotarias, foi recrutado e respondeu, desembarcou na Normandia em Junho de 1944, foi um overlord como os outros, hoje cigarros e magazines e caramelos de café e lotarias.
Um homem é de uma mulher e do que cultiva sob o céu carregado de electricidade e de anjos e de tantas tormentas quantas pode.
Eu sou do lado da voz nisto que digo.
Uma vez, era Outono, fui por um monte muito grande, levava um bornal cheio de papéis por escrever, não teria, quê?, mais que doze anos, a vida era geodésica, o meu Pai era vivo, além as fábricas formigavam de máquinas pessoais, cartões de chumbo arrolavam os grandes céus da infância, o comboio ia e vinha como uma mensagem direita ao coração, era quando deveria ter começado a estudar para engenheiro químico, agora é tarde.
Os meus amigos já foram todos à tropa, já se casaram e descasaram e compram jornais e brinquedos e sapatos e carros, moram todos longe até deles mesmos, as minhas amigas também, algumas perderam-se nas respectivas carreiras profissionais, uma está a fazer um doutoramento em salvo erro hermenêutica, outra tem um cancro, outra mora na Figueira, outra casou com um amigo meu chamado Smith.
Nisto que digo, eu não, realmente não.
22/07/2009
Por que Carga de Água
Pombal, anoitecer e noite de 22 de Julho de 2009
Chove mas é Verão, a noite veio de águas como os infantes que rompem as mães para nascer.
Julho é comentado nos cafés por ser brando, nada parecido com o incêndio de outros anos, em outros cafés.
Estive a ver as águas batendo nas árvores da rua, nos candeeiros que as contam uma a uma pela noite.
Não, não parece Verão, antigamente o calendário não tinha ’inda sido rasgado pela poluição, eram mais naturais as coisas.
Viver acontece mais e mais fora do horário nobre, é certo, mas pode aproveitar-se a rua para fumar um cigarro à beira da chuva enquanto não chega o mês dos emigrantes, dos foguetes, do catolicismo pimba, das merdas patrionacionais do costume, pode uma pessoa dar-se a ler o Nemésio prefaciador de Merícia de Lemos e/ou comentador sucessivo de Supervielle e Valéry.
Uma pessoa pode muito no pouco que quer.
Para mim, uma carga de água dançada pelo vento chega-me bem para tesouro de uma noite, ao cabo de um dia calado.
Não está frio, é agradável circular pelos corredores sem tecto da cidade, agradável descobrir uma que outra rara silhueta procurando fugir do que chove e da poesia e da lucidez e da hora.
Bruscamente o Verão não é passado, vou na voz, farfalha a árvore farta de água, nada parecido com o incêndio de nascer.
DOS JORNAIS DE 22 DE JULHO DE 2009
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Com Tachins Tapar Trenos (poema estaminal embrionário)
Souto, Casa, entardenoitecer e noite de 21 de Julho de 2009
Foto: Mata do Casal Galego, 27 de Abril de 2009
Um dia fica-se sem pessoas em pessoa, há-de restar pelo campo a indiferente ira do vento, a maresia frutícola que pinta pássaros nas manhãs mais despovoadas de que nem memória houve. Circula pela abadia do céu a grave nuvem, a nuvem monástica, dedada descomunal de intocável mão, quando se não sabe mais o menos é chamar humanas às coisas. O rapaz que vai ao lixo sente bem os pés no chão, o toque da brisa ao fim do dia que se acaba em noite, o aroma dos pessegueiros frutando o mar do ar, tanto ar. Podia ser o Outono, entanto. É outra coisa, um avião traça a giz uma longitude altíssima, pelos subúrbios da razão florescem as qualidades verbais da luz nas casas, nas árvores, no trecho de mercúrio que o ribeiro é. Não é vadio já o coração, mas sedentária víscera recolhida ao tugúrio da boca, por onde fala, na volta do lixo. Hoje, tiras de toucinho muito finas enrolam tâmaras, as sílabas saem meladas do confronto com a introspecção da ceia, durante que se lembra isto e aquilo, vagos projectos de não ceder todos os quartos à infelicidade, à desistência muito menos. Das câmaras pulmonares sobe uma corda de som, é uma palavra dirigida às cortinas da sala, que ondulam escutando-a, sob que passam as gatas e as moscas, não demora muito a noite colectiva que o indivíduo marca como a um papel estudado. Estar num apartamento em Uppsala e decidir não sair, ficar em casa com uma revista dedicada a coisas como a periodização literária, os enigmas aztecas, o comércio de peles e peixe salgado em reencontrados anos do idioma. Não seguir, portanto, pela estrada que liga Heby a Sala a Avesta a Hedemora a Sater a Celorico da Beira a Sátão a Falun.
Lá no fundo (fundo alto: como o céu) do corpo está a célula estaminal embrionária, atómica deusazinha repetidora de si mesma como a má poesia. Eu, que não saio já nunca de aqui, viajo por ela a cantos (todo um cinema verbal sempre – Heby, Celorico) que são mundos eventuais baseados em casos verídicos mas inverosímeis e vice-versa:
com um cachorro preto pelo Botânico da minha terra, há mais de vinte anos / o animal gostou da largueza do sítio / claridade verde de muita árvore no ar, ar-ár-vores / pares de namorados e velhos seres aposentados pontuavam os recantos e as vias / as árvores estrangeiras falavam já então vento português / aos pés delas os nomes em latim, as origens do exílio / alguma água escurecia-se como sucede ao vidro na noite e ao olhar no vidro / eu ia dar o cãozito, irmão daquele amarelo com que fiquei dos dois que nasceram da minha cadela, ao dono de um snack-bar na Combatentes da Grande Guerra / prolonguei um pouco a companhia dele / andámos os dois por ali / depois saímos do Jardim, passámos o Seminário, entrei no snack e dei-o.
Com tachins tapar trenos, assim a minha vida escrita. (Como a de muita gente, não há especial especialidade nisto.)
21/07/2009
Na Varanda, o Crescer das Plantas
© Minor White
Road and poplar trees in the vicinity of Naples and Dansville
NY, 1955
Souto, Casa, tarde de 21 de Julho de 2009
O colo do fémur aparece por vezes onde menos era esperado, também não é comum esperar que o colo do fémur isto ou aquilo e assim ou assado. Alterações genéticas, investigações no pensamento, manipulação clínica, tudo bate as asas no ar das nossas histórias pessoais, parece. Um homem de boné encarnado cultiva legumes numa leira emoldurada de choupos, num canto do País. Andou por França, Suíça, Bélgica e Alemanha alguns anos, voltou há alguns anos, ficou, tem dias em que pensa nos lagos gelados que viveu nesses tempos, agora isto esquisito no colo do fémur da mulher que cá o esperou estes anos todos. Em Almada, uma mulher de quarenta e dois anos considera-se gorda, está sentada num banco alto de balcão, bebe uma laranjada sem gás, sente-se um pouco enredada pela melancolia. Na varanda, o crescer das plantas fá-las povoação. A sombra de um homem novo mancha a estrutura de chapa da paragem do autocarro, à noite neste sítio há quando chove putas recolhidas que gostam de reggae e de rebuçados de café. Perdeu-se qualquer coisa da qualidade de viver, não haverá muitos que o saibam definir, muito menos justificar. Em pranchas de madeira pintadas de cinzento, perto de alguma nova urbanização, crianças mexem as pernas no ar. Uma noite de há muitos anos, fui com um sobrinho ver uma música que dava no Teatro Gil Vicente, havia famílias na plateia, hoje desfeitas talvez e talvez refeitas em outras, talvez. No Hospital Pediátrico, a hematologista saía do turno a chorar sem poder conter-se por causa da leucemia ser infantil também, recordo isso, recordo como isso provava o total absurdo de Deus, deixai vir a mim as criancinhas etc., parece que estou a vê-la com os olhos cristalizados postos no chão. Subi a Sereia, ouvi exercícios de piano descendo de um terceiro-andar à rua, alguma menina desfolhando o tempo, nunca a vi, o tempo sim e o que ele desfaz que toca, ouvi a música e passei como tudo passa. Semanas, empenas, estearinas, azeitonas, escunas. Escamas, poemas, limas, glaucomas, escumas.