Transporte de Animais Vivos
A minha casa, pobre palácio de inverno, estava em penumbra, pois que, fora, a tarde februária ardia apagadamente. Senti um choro resignado de crianças no pátio. Fui à varanda perceber. Não eram crianças. Quero dizer, eram. Eram crianças, mas não humanas. Eram cordeiros enjaulados à chuva na caixa de um veículo cinzento como a pobreza cuja traseira declarava: “TRANSPORTE DE ANIMAIS VIVOS”. Muita água, portanto, nesta história que vos conto: a água que pluviava de cima e a da voz daqueles infantes de holocausto.
Volvi para dentro, cerrei as portadas da sala, fechei a cabeça nos auscultadores japoneses e tentei perder-me deles, dos inocentes, na música de Schumann. Em vão. Através da partitura, os cordeiros continuaram breves, mínimas crianças imoladas ao pranto, cantoras de um desespero para além do suportável: musas de magarefe.
Provavelmente, o homem é bom homem, aquele que transporta animais vivos. O crime não é dele. Será de Deus, que aceita – e até exige – os mais bárbaros sacrifícios em prol dos rituais mais desdivinumanos. Não sei. Sei que nunca mais comerei nada cuja voz imite tão bem a das minhas filhas em muito pequenas.
Ocasião apesar de tudo boa, esta, para vos não maçar e/ou deprimir com lancetas atiradas à nossa vil praça política, feira sórdida que tão bem quanto eu (re)conheceis à saciedade. Pessoa que conheci há tempos em Santarém (excelente pessoa) disse-me, aliás, que escrevo coisas muito negativas, muito pessimistas, coisas nada construtivas, perniciosas até ao bom funcionamento do sistema. Porque com ela concordo, aqui vai crónica inócua sobre enjaulados anhos em álgida tarde pluvial: mas perfeita metáfora, também, de nós, cordeiros de Deus a quem atiram os pecados do mundo.
1 comentário:
E quem rogará por nós, pobres e tristes cordeiros do mundo?
Apesar do frio do texto, gostei e estou aqui a testemunhar.
Abraço.
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