© Paul Strand – Untitled (1915)
Souto, Casa, noite de 10 de Fevereiro de 2010
Espírito da noite, de tão baixo te invoco sem voz,
a vida é agnóstica por Natureza, sabê-lo-ás
ao menos tão bem quanto nós, os pobremente
vivos da vizinhança.
Rondei ontem uma praça despovoada de gente,
pareceu-me querer que o espírito da noite
a sublimasse sem dor nem pesadelo,
em torno os cafés vazios, as lojas fechadas,
as árvores abertas como mãos ao céu encerrado.
A nossa vida tropeça de intestinos, mais e mais
grosseira, menos e menos espiritual, ó espírito
de cada noite, gambiarras de estrelas psicadélicas
gelam coalho diamantino no imarcescível
inacessível céu, lenta ronda secular por
vilas portuguesas como nós nascidas para anoitecer
ou a noite ser. Alguns de nós (tão poucos,
tão roucos, tão loucos) oram sobre o púlpito
de outro corpo à confirmação erótica da
essencial solidão de cada um com seus botões
sem casa. Assustadora, justa, a degradação
do corpo volve-se versos cuja graça o mais
que faz, na noite, é rogar ao espírito que
o seja. Táxis e astros convivem na percepção
sempre restrita, é quanto pode a noz cerebral,
enquanto as emoções rosnam adrenalina
nos pavilhões obscuros do coração, latejam
nos pulsos dos suicidas, afrontam à pancada
os desastres aéreos e as virgindades católicas.
Espírito da noite, não é fácil estar vivo e
pensar ao mesmo tempo. Profuso espírito da noite,
meu aminimigo, rosa preta de pé na lama,
anjo e corvo, assombração marinha e cidadela vã,
cobertor de cartão sobre transido corpo sem-abrigo,
banquete de ternos tristes fantasmas como luz-sem-anos
de estrelas há muitos anos-luz apagadas.
Também: medonha biblioteca de ilegíveis solidões,
medusa opaca, opala confusa, aspiração de pessoa
em triste gentileza, agonia a prestações, às vezes
alegria, sim, espírito da noite, alegria. Uma
noite em Penamacor, uma manhã no Choupal,
uma tarde de domingo em Leiria, sem outro que
o teu amparo, espírito da manhã anoitecida,
minha vida.
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