01/02/2010

Escrinvenções como Lenços Luminosos de Todas as Cores

© Joel Meyerowitz – Red Interior (Provincetown, 1977)





Souto, Casa, noites de 28 de Janeiro e de 1 de Fevereiro de 2010











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Red Salva Tlader Moreira, navegador aéreo. Várias nações e línguas na delinhagem. Vinhos delicados e velhos na cave da casa. Sem mulher já, hábito de fotografar pontes e crianças absortas, tardes sem rumo por cidades sem nome, felicidade bibliotecária aos sábados de manhã, em 1973.







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Uma figura descendo uma rua dos subúrbios. À beira do passeio, aos pés de um canavial breve, uma caixa de madeira com uma estrela amarela de rebordos encarnados pintada. A figura, que é um homem, pega na caixa e leva-a para casa. Antes, pára no café para comprar cigarros e beber alguma coisa. A televisão distrai-o, deixa-se ficar para além da meia-noite por causa do filme. É uma película realizada por Clint Eastwood, com William Holden e Kay Lenz nos protagonistas. Sai e já vai a um terço de caminho quando se lembra da caixa. O café já está fechado, mas o dono mora na sobreloja. Há luz na janela, ele toca a campainha, o dono desce, traz a caixa com ele. A figura agradece, pede desculpa, retorna. Em casa, toma banho e uma última bebida, não abre a caixa para ter alguma coisa de facto nova amanhã.







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Uma das coisas inquietantes de ser português em Portugal é a contemporaneidade com tanto filho-da-puta vivo. O filho-da-puta morto, enfim, sempre deixa que se lhe cague na campa. Mas o vivo é uma porra. É uma porra porque faz de nós campa.







4







Lembras-te de um homem com uma caixa de ilusionista em casa? Uma noite, leva a caixa para a varanda, abre-a e, um a um, deixa voar incontáveis lenços luminosos de todas as cores do infinito, para encantamento de todas as crianças da vizinhança e meu.







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Syd Barrett e J. D. Salinger eram duas pessoas recolhidas das ribaltas. Fizeram o que tinham a fazer e recolheram-se. Teima em fazer o contrário muita gente que não presta, gente de um fazer irrelevante e até nocivo. Recolhimento e sobreexposição são faces da mesma moeda, mas só uma das faces tem valor.







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Pessoas sós são animais favoritos da literatura. São mundos nada desprovidos de fascinação. Entram em canções como quem chega a casa com uma caixa de ilusionista nas mãos. Vejo-as muitas vezes, mormente quando não abro os olhos. Povoam-me não poucos sonhos e nada poucas linhas. Pessoas sós como barcos sós no mar ermo. Pessoas que parecem o último fruto de uma árvore do fim dos dias. Que parecem ter vindo para olhar o lume quando chove na rua, quando na rua ninguém passa ou está. Homens e mulheres são tais pessoas, mas só uma só de cada vez. O homem que recolhe o lixo e o vai abandonar à roda conventual do contentor. A mulher que passa a ferro e suspira não sabe porquê. O vazio delas enche o mundo. Tenho receio de vir a ser escrito por uma delas – e que ninguém leia o que tal pessoa escreveu a sós.







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Disse-lhe que costumava inventar anjos para suportar alguns dias, um pouco à maneira como as meninas investem a solidão nas bonecas. Também é verdade que uma laranjeira me comove brutalmente. Ela respondeu-me que não apenas me acreditava, como já sabia.







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Que o prato da balança penda mais sob a beleza do que sob a merda. E que lhe seja fiel como honesto prato de balança honesta.







9







O olhar em linhas: de cor, de música, de verso, de alta-tensão, de senhora, de água, de ferro, de costura, de conduta. Ir por elas, até de olhos fechados.







10







Recordo famílias merendando gaiatamente em colinas melhoradas pelo alvor outonal. Recordo uma barragem não tão extensa quanto o meu futuro de então. Recordo uma rua anoitecida no Verão, as primeiras luzes e as últimas casas, lá onde começam o Campo e o Sonho. Recordo isso pintalgado de lenços luminosos de todas as cores – e o que não recordo, escrinvento.

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Canzoada Assaltante