28/02/2010

Um Pouco de Tudo Quase Nada (II)

II



Agora é ’inda a vida, a constância ainda das leis.
Presidem todas ao futuro equívoco que a tanto quanto é passado corresponde.
É preciso ter no cérebro as cores, tal que o mundo a preto-e-branco não aniquile antes da hora orquestral respectiva de cada pessoa.
Na mesa rente à banca dos jornais, dois jogadores de tabuleiros trocam gestos e peças e rodadas e pouquíssimas palavras: tenho feito o mesmo, mas sozinho.
Uma hera natural serpenteia a trave do tecto, cujo verniz não se estilhaçou ainda.
Gradação de azuis derma a parede: mais escura a metade de baixo, mais clara a de cima.
Aquele homenzito de camisola roxa parece muito fatigado, semicerram-se-lhe as pálpebras, são-lhe pensativas as mãos.
Gentileza e cordura de frases fazem bem à relojoaria psíquica, mais a mais num café sitiado pela chuva da noite de sábado.
Muita chuva: magnífica ablução de cristais.
Delícia observatória: uma mãe de rosto equino, crina muito preta e comprida, pele que às moscas estremecera se moscas houvera – sustém ao colo uma criança rosada como um presunto, toma café entre ralhetes ao homem, um pequenito operário que ingere um conhaque nacional benzido pela arte cáustica da lixívia.
É um tipo magnífico, portuguesíssimo: gente da nossa, gente que 25dabril algum pode resgatar da falta de livros e de perspectivas.
Mas o menino pode vir a ser doutor, o que daria no mesmo.
Trabalho neste cartório, por assim dizer, há quantos anos posso, certidões extraindo à prodigiosa pobreza do mundo.
Uma pessoa de mínimo juízo acaba preferindo Ferreira de Castro a Fernando Namora – por isso mesmo que pois como não?
Estive uma vez em casa do pintor Lima de Freitas – diz-se que já morreu (ele).
Crina maravilhosa, a da mãe-égua, palavra de honra!
Ei-la à máquina desmoedando um maço de Águia.
Deixa a criança abrir o maço: de pequenino se torce o nicotino.
O homem dela tem um casaco de antílope de Taiwan.
A criança veste plásticos comoventes de bonequinho natalício.
Os ciganos ainda não chegaram.
A égua funga e fuma, no intervalo dos ralhetes ao homenzito dela, que é pequenino e pequenino e de mãos entarameladas de bodum.
Há ou não há uma glória triste?
Há.
Viver um pouco de Eliot e um pouco desta consagrada família: quanta multímoda beleza: a bloomsburyzação do T. S. e o fungar líquido desta mãe-de-corrida casada com aquele ponyzito: quanta multímoda beleza!
Um cigano, finalmente.
Alguma vida ainda para registo do milénio incipiente, sua comezinha historicidade, sua relicária miséria.
Entre os produtos expostos para consumo na Casa, Yeats e Char, Morante e Sarrazin, Ferreira de Castro e, vá lá, Fernando Namora.
Sobrevoada a geral pobreza, em algumas casas vigora o candeeiro do estudioso: o cinquentão que confere a facturação da semana, a cabeleireira casada com o toxicodependente que a rouba, o engenheiro jovem que se resigna a dar explicações de matemática à falta de melhor, o fixador de escrituras que se promete uma semana em Punta Cana com a mulher do outro, o egresso de Oxford que recusa aos Franceses a Alsácia e a Lorena.
Uma das leis relativas à Felicidade remete para certas horas vividas na cozinha aquecida, lá fora o General Inverno peneirando pessegueiros e choupos e oliveiras e cabos de alta-tensão, quando a figura da Mãe organizava o calor, os abastecimentos, o serviço, a disciplina, a Língua Portuguesa de há meio século ou mais e o presente eterno da tal Felicidade mesma.
Não há excepção a esta regra casuística em caso de vir a ler-se Roman Jakobson e Adam Schaff e Gérard Genette e Daniel Boorstin e Eduardo Lourenço: desde que, também, se não ande por esses cafés de província a falar nisso, sobretudo quando chove e dá o Leixões-Benfica na televisão dita pública.
Beleza de exposição de refrigerantes, licores, aperitivos sólidos, frascos de sucedâneos cevada-café, revistas, a Hera na Trave, mulheres de porte cabeçal equídeo.

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Canzoada Assaltante