© CD Robert Doisneau – Coco (Paris, 1952)
Souto, Casa, e Café Ripa, Pombal, entardenoitecer e noite de 16 de Fevereiro de 2010
Nada para além da palavra, como nada além há e é do infinito. Consolação mínima como máxima. Dança-se sozinho ao luar. Não há outro baile. Ainda alguém connosco há no nascimento. Na morte, não, ninguém. Antes, pois, da corrupção e da desordem fisiológicas, teorizá-las em verso. É o mínimo e é o máximo. A consciência? Desde sua primeira hora (em português, Aurora) debate-se com o paradoxo da frugal imensidão. Digo: o pão de cada dia e as estrelas de cada noite. Néon de café de província em noite invernosa: condição cósmica possível. Não há magia. Lamento, mas não há magia. Há gestos engraçados, totémicos. Mas renego a escudela de esmolas: budista, cristã, whatever. Acredito no íntimo, singular, inócuo encanto ante a desarmada rosa, de espinhos continente embora, da manhã. Não se trata, no entanto, desse acreditar para não morrer de todo da fé. Trata-se de fruto (a rosa) e usufruto (o olhá-la). Escrever isso num café de província. Rosto encarnados como fundo de barbas encanecidas: bebedores de café de província. Infusão, profusão, fusão, confusão. Difusão. O Parque da Pena, a Arrábida de Osório, Alfarelos, Baltimore. Ou talvez não. Talvez só o íntimo Paquistão da exótica guerra de cada um contra si mesmo. O meganada do Mundo. As mulheres da minha infância suportando bilhas na cabeça sobre rodilhas de pano. O cabelo delas amarrado em cosmogónica caracólica espiral na curva posterior da cabeça. A violada a vinho púbis maternal delas. Por onde isto vai. A Aurora, às vezes nome de mulher velha, de dia novo sempre porém. Calafetar a memória com o pez possível: a poesia, o prosaico verso pobre. Sem manias tristes, se possível. Sem armas. Como a rosa, sem tristezas e sem manias. Isto é: não conceder à merencória portugalidade a obscena banalidade da telemerda brasileira. Ir por outro lado a outra parte. I-lo em português eficacíssimo. Espírito da água. Sem magia e sem espiritualismo, espírito mágico da água. Esta noite, passos volvendo través escuras ruas iluminadas sem fama de laranjeiras vivas, aquilo não era chuva, mas diamantina poalha quebradiça de água pupilando miríades candeeiras: molha-tolos, como por o Rectângulo Pátrio se diz. Molhada olhada maravilha: e palatais lh(es) lh(as) (i)lh(as) que (o)lh(as). Sedutores sons. A consciência? Isto em minha idade: gentesdantesdepois. Ou seja: eutretanto. O Volga. A Valsa. Trotsky no México, Marley no Central Park, a Swanson ao alto cí(s)nico (de cisne e de cão grego) das escadarias-crepúsculo-dos-deuses, a pobre Garland morta de tanto álcoOz. As vidas do Mundo iguaizinhas às deste bairro esta noite este carnaval. Fugacíssima peremptória merencória ilusória condição vocabular: infinitude provável e provada, monstruosa e demonstrada. Como aprendi isto? Como se ensina isto? Recordo um auxiliar de pintura de paredes comendo um pêssego ao ocaso de um dia de trabalho. Estava sentado no mais alto dos três degraus da cozinha para o quintal. Tinha ganhado o dia e o pêssego. Repousava ante a cumplicidade das laranjeiras, das couves, do poço, da lenha rasgada como imprestável poesia. A força desta recordação: ser já este mármore. Mármore? Mar m(ai)or. Risco absolutamente gráfico de andorinha. O problema dos cadáveres físicos, físicos absolutamente, vistos na infância. Às vezes de gente, outras de pássaros: a igualdade frígida da Morte. O espectáculo todo-o-terreno-todo-o-teatro dos velórios. O gosto do Tempo: areia-na-boca. Não só isso na boca, mas en passant. Viver é a eliminatória máxima. O nascimento é a grande final. Não há quartos – e escusado é rezar terços. Palavras, palavras: presilhas do que cinto. Vila Real, Vila Virtual. Transconspiração. Precisar de anjos, derradeira pobreza. Litígio polenizado de flores-machos. A ominosa (opticamente falando) lagarta-dos-pinheiros. A infantilização da velhice. Sim, o suicídio da boca – pela boca. Sete anos. Vinte e nove anos. Seis séculos. Uma noite. Tudo tão parecido. Que depois pode ser oferecido aos bordados que as velhas abandonam por passamento? A Praia da Consolação de 2010 é a mesma – ou não pode ser a mesma – de 1971? Um cigarro branco na minha boca preta – onde a minha criança geradora de crianças? A marca do sangue, o estigma da cultura, a sabedoria toda lexical – ou fecal: dá (n)o mesmo. Vitória vibrante da imanente alegria. Construída psicose – e deliciada mercearia vocabular. Entrega a isto. À erva que rompe a pedra xadrezística dos calceteiros. Vichy. Gerês. Santarém. Bochum. Oliveira de: Azeméis, Hospital, Bairro, Frades etc. Narvik. Vinagres. Ceuta. Governos. Tânger. Soure. Oslo. Ourique. Zurique. Manique. Munique. Annaburg, a sul de Berlin. Kabul, Delhi, Calcutá, Bogotá, tudo longe da vista. Rudolf Hartog. Capetown, Madagáscar, Tóquio – e o Sabugal. Whitewood, Saskatchewan (Helen Morgan). Janakkala e Tuusula, Finlândia. O pão de cada dia. A luz de cada pão. Os ciganos distraídos com o futebol dos Outros. A peca beca. Costacurta. Albertini. Ambrosini. Tardelli. Altobelli. Zola. Zenga. Riva. Calvino. Alvaro. Sciascia. Soldati. Morávia. Levi. Montale. Sítios de gente. Piscina sim, piscina talvez não. O preto que enlouqueceu. O branco que também. O que não. O que também não. O aquário da televisão. Rápida fustigação ocular, prisma, caleidoscópio. Em que universo(s)? Ou em que verso(s)? Assim-estes:
Gigante ignomínia é não ter querido
ao que for ou foi ou tenha sido.
Enquanto ente, sê-lo igual e diferente.
O mais, o mais é apenas gente.
Perceber a diligente teimosia: a dos que edificam estrofes como a dos que estrofam edifícios. Ir de motorizada aos bailes da ginja e do capilé. Recuar o futuro: ficar escrito. Sem magia, sem merdas: recuar o escrito, ficando futuro. Praias da Normandia. Vídeo-nazismo: metralha e Dia-D e Hora-H. Busca lepidóptera de anais. Cozinhas tristes, águas geladas varridas em outras vidas. Cominação. Verdurismo. Celibatente. Eucaliptância. Cerbeveração. Rictoalismo. Buenaveridir. Sorumbátixação. Camiões sem Luiz Vaz ao volante. Que pena, perder-se a magia de si mesma quando a criança acorda para a aurora púbere. Que pouca coisa, não foram os versos. Que quais? Assim-estes:
Rio-rei de água-tempo,
cordial sublimação
d’alegria d’um momento
a tempo da perdição.
Singra correntes perdidas
quem os não navega recto.
Dar o corpo ao manifesto
é sangrar correntes vidas.
Solta de uma vez por todas
as amarras corroídas.
É sangrar correntes vidas,
é sangrar, nem que te fodas.
Sem risco – sem risco é que não. Toda a vida como cartada. Ser agora: antes ainda conta, mas depois já não dá tempo. Sono infante – sem sonhos, merecidamente sem. Ao outro dia (a Aurora), esse renascimento civil que preside à inocência dos agricultores, à culpa católica dos pescadores, à monótona tristeza dos professores – e à higiene das putas. O orvalho que a noite chora tal que matutina ruborize a rosa. O senhor Marcelino merceeiro esplanando caixas de frutas & legumes como um catedrático, teorias (e tão preciosa é, verbal, esta vírgula entre catedrático e teorias, sim?). A força amorosa da nossa Mãe ter sido primacialmente (Deus!) sexual. O descer. O ter subido. As poucas (mas tão formosas!) alegrias desta vida sem passaporte para outra. Os filhos do empregado-de-café tão iguais aos nossos, mas não, oh nunca!, como os nossos. A fornada aromática do pão, tu sabes? A camada, por assim dizer existencial, do nevão. A ígnea beleza de isqueiro das raposas, esses clarões de pêlo e de repente. O Inverno em Baltimore. Quando nós éramos mais velhos do que este Outon’apenas. A celebração champanhosa da ortografia nenhuma. Mas os pedreiros dizem “afagar” quando suavizam a pátina de cimento no rosto vertical da parede, do muro, do chão até. A falta que à nossa vida faz, às vezes, um defesa-esquerdo, o que fizesse a ala do coração. Favónia brisa acorrendo ao mesmo coração num transe choupalino, fluvial, de matinal manhã dominical isenta do cancro do futuro. Corpo contra corpo, corno contra corno. Gaivotas e andorinhas, pardais e albatrozes e atrozes alvas adultas. Cuidado! Circular o menos possível pela esquerda. Tomar café e a vida em doses moderadas pela meteorologia. Ser obscuro na literatura, mas educado sempre na rua. Filmar com os olhos de dentro. Suportar com dignidade o susto do nascimento. Conceder minutos às árvores-de-fruto. Horas de água às planícies viajadas. Ter uma grafia por modo de vida. Um cão leal. Ser leal a um cão ressuscitado em duas gatas ao mesmo tempo. Nada para além, porém, Mãe!, da palavra. Esse ter tido (ou sido) 18 anos. Este demorar avoengo nas catacumbas genealógicas. Uma sepultura de ripas de berço é quanto queremos de amparo aos pais a enterrar, sim, não? Volta morosa e amorosa do querer-ficar-ainda, apesar de tantas totais pentotais provas em contrário. Este remanescer querido do coração, esta volta de putas brasileiras por cinco tostões de português, este ter-razão-cá-dentro-contra-nada. Lume. Agora, um pouco de lume: há quantas vidas nos faz o Sol o mesmo, pão de cada dia, mais diurna estrela da nossa noite?
Sem comentários:
Enviar um comentário