Souto, Casa, noite de 1 e madrugada de 2 de Fevereiro de 2010
Muita gente vive só, toda a gente morre só. Vezes há em que me acontece pensar na humanidade como um acontecimento único, ubíquo, simultâneo, uma centopeia colossal de uma vez só. Digo: mortos, vivos, feridos e nascituros – todos a uma só vez e a uma só voz. É estranho. Eu também devo ser estranho. O George Best, o Louis Althusser, a Alcoforado, a Beatriz d’Este: não sei. Manchas gráficas, como estendais de roupa animada pelo vento, molham-me a percepção, que julgo humana, intoxicada embora pela usura das artes. É como ter frio ao sol. Ruas vegetais alongando a dimensão outonal do olhar: vês? Altos portões negros gradeando parques proibidos. Botânica, química, alfaiataria, agricultura. Belfast, Auxerre, A Coruña, Odessa. Outras vezes não preciso de ser este, mas outro, alguém sozinho numa sala-de-espera, ante uma mesa baixa com revistas velhas e um jarro de plástico sem flores nem nada. Outras vezes, descortino portais (postais, se calhar) enegrecidos: oficinas de bicicletas, pensões de quartos à meia hora, cavernas de madeira onde gente convive com ratos, retratos e restos de hortaliça e crianças atónitas como mochos. Extensões geladas, algumas na Islândia, outras no coração. Corredores acossados de bolor, salões ilustrados a ouro eléctrico e a mulheres vivas. Frascos maravilhosos cheios de rebuçados de limão, groselha, café, framboesa, anis. Para além do folclorismo pindérico, as mulheres-da-erva escrevem na perfeição a tinta preta da brutalidade da sobrevivência. Sim, toda a gente na mesma sala-de-espera. Em perdidos meses de um inverno sem retorno, colhi a flor das seis da manhã. Erguia-me do poço da mente, socorria-me de uma chávena de café e ia apanhar o comboio. Os trabalhadores e as trabalhadoras arrulhavam o renascimento de um dia mais – ou ainda. Eu vivia daquilo: de estar vivo entre vivos idênticos. Podia ser em Baltimore ou Milão, em Trondheim como em Xangai. Era igual. Não sei dessas pessoas, não sei que pode acontecer a um inverno de que se perde o número. Sei poucas coisas. Uma das que sei, não sei porquê, remonta a anos em que a emoção simples e fulminante do Grande Nada era uma forma de justiça. Os óbitos afectuosos não ajudaram, depois. Nem os óbitos, nem os hábitos. Mas a insidiosa sobrevinda do outono pessoal não é despicienda. Uma lenta maré confirma o estatuto lunar de cada um – julgo. Mas isto não tem nada a ver com a esperança, nem com o desespero, nem com a pobreza, nem com a incerteza. É tão-só uma maneira de não ser tão só.
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