© Lothar Wolleh - Prayer inside the Vatican (1975 )
Souto, Casa, madrugada de 11 de Fevereiro de 2010
Cidade interior, interior cinema: as imagens, as povoadas imagens verbais de que participo em vivo. Agentes de polícia patrulhando a pé bairros adormecidos, contentores de lixo adernados, esventrados, pestilentos, humanos, gentios. Um cão cheirando os destroços. Um rapaz borbulhento comendo maçãs sentado no lanço de escadas exterior do prédio. Todos estes lances angulares povoando-me num corpo, como um dia a doença terminal (acontece a todos). Perfume de baunilha vidrando o ar de sol (bandeira amarela) na rua que desce para a praia. As crianças brunidas de ouro, hóspedes do Grande Hotel. Saltimbancos (família maltrapilha, artista) na aldeia: o mais triste circo a céu aberto que ainda hei visto e vejo ainda, dentro, muito dentro: ao pé da taberna do senhor Dias, uma vez, e na confluência das ruas do Leitão, da Casadinha e do Lagar Velho, outra. Ponho-me esta incógnita: que predomínio exercerão estas epifanias (estes avatares, também) na eventualidade (eventual idade) da velhice? Que pressão será a destas imagens fascinantes? Na muita idade, poderei ainda compor epitalâmios à morte adjacente, superveniente e suma superintendente? Permitirá a degradação do cérebro uma derradeira gliptognosia? Que gerocomia, enfim me será poupada na poesia última de que for capaz? O perfil da pedra no mar de Sesimbra, a revoada de raparigas de gaze transparecendo em avenidas intervaladas de laranjeiras, as mães velhas confundindo os netos com a metempsicose dos filhos, o gorro tóxico de hulha asfixiando Londres, as cervejarias aquecidas tão ideais para ler jornais franceses a troco de uma caneca e um pires de pichas, o João Bebé travestido de tenista ao alto das Escadas de Santiago, à esquina da Farmácia Donato, depois eram os cartazes dos cinemas, por cima do urinol municipal, em frente ao Edifício Chiado, já muito perto d’ A Brasileira e do Arcádia, a pancada benigna de luz fluvial ao clarão da Portagem. Sam Shepard escrevendo teatro num quarto de motel no deserto. Van Helsing e Van der Elst. A Pasta Medicinal Couto e os Gelados Rajá. Atomium à belga, o Caso Chessman, Aracataca/Macondo, o Café Combinado de finada memória, o Reduto Bar, a Cervejaria da Fábrica, o Real das Canas (onde Carlos Alberto Louro da Fonseca e Maria Helena da Rocha Pereira), a chuva distante tornando tinta-da-China os choupos grandes do horizonte, os pederastas ciciantes de entre a Estação Nova e a linha do Mondego até o açude. A Praça Bem, em Budapeste/1956. O calafrio social do desemprego. Os muitos mortos à direita e à esquerda de todos os hemiciclos. A corrupção geriátrica dos senadores. Os anéis envenenados, bórgios. As meias de seda embebidas em champanhe à Profumo. Ultraje e desumanização, pratos quentes do dia – todos os dias de todos os séculos, everywhere you look at.
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