Aquele homenzito de camisola roxa parece muito fatigado, semicerram-se-lhe as pálpebras, são-lhe pensativas as mãos.
28/02/2010
Um Pouco de Tudo Quase Nada (II)
Aquele homenzito de camisola roxa parece muito fatigado, semicerram-se-lhe as pálpebras, são-lhe pensativas as mãos.
Um Pouco de Tudo Quase Nada (I)
Nova Corrida Nova Viagem à Cidade de Leonor
27/02/2010
A Boca em Coimbra, o Cu no Mundo e Olha o que Chove
26/02/2010
Passagem Escrita
Parece-me
grande claridade
deixar escrito
que o que nos fica
da passagem
se resume
a
filhos
uma frase dita à chuva a alguém solar
o cheiro das mãos remanescente nos livros
tidos em casa como gatos
a cor dos olhos transtornada pelo retrato interior
a caderneta de poupança amarelecendo onde era azul
as sapatas de trazer por casa, o cordão do pijama também
segredos de primeiro-andar num prédio que não era o nosso
o single do Lionel Richie a dizer hello a uma cèguinha bonita
árvores vergadas ao vento frio da infância toda em kodachrome
a pele do planeta um tudo-nada aflorada pelos pés trémulos
termos sido involuntariamente internacionais também
e também a doença que levamos em nosso nome até
que nos leve ela
em nome dela
mas sobre tudo o mais
os filhos.
Rosário Breve nº 144 - www.oribatejo.pt
25/02/2010
Partilha de Folhas
Souto, Casa, noite de 24 de Fevereiro de 2010
Usam os corredores para levar objectos de onde estavam para onde passam a estar – O rapaz preocupado com a saúde da namorada encosta-se a uma árvore no jardim-parque – Homens travestidos de bancários fumam no pátio do crematório municipal da cidade marítima – Um sismo muito ligeiro consegue desordenar embalagens numa farmácia fechada para a noite – Nas traseiras do restaurante o chinês de segunda geração despeja cascas de camarão num balde azul-turquesa – No anfiteatro apinhado de evangelistas brasileiros uma mulher chamada Arcanjo respira grosso – O frigorífico do bar do hotel freme como um cavalo terminal – Sentada ao crepúsculo na varanda a avó sente que se lhe engelham os dedos dos pés e as veias da cabeça – Ao telefone uma pessoa amada por nós dois soluça por causa de outra – Amanhã este caderno e a árvore do jardim-parque seguirão partilhando folhas.
24/02/2010
Perseguidores
Algures no tempo-espaço (sobre a neve talvez), Eugénio Lisboa leu Rui Knopfli, escreveu as palavras que lhe ocorreram em consequência de ter lido. Pessoas há que, não escrevendo nem lendo, fazem o mesmo, em palavras ditas sobre ouvidas palavras. Estas espirais são incessantes. O lobo persegue o coelho, caça-o ou não, come-o ou não, mas não consta que fale muito disso à matilha. Nós-outros somos muitas vezes como os lobos, caçamos ou não lemos, escrevemos ou não comemos. Mas perseguimos sempre, não sei o quê.
Fui à Rua Levar-me ao Lixo
Fui à rua levar o lixo e sofri como de costume a vocação tão atlântica e tão portuguesa de quem fica em terra na vida e depois na morte também.
A noite nova usa o antigo hábito do vento, gaze que eu gostaria de sentir à proa de um barco com nome de mulher rumo ao círculo polar mais longe disto, esta rua cujo contentor é tão escasso como a temporada cultural do município e a perspectiva de um dia o pensamento amanhecer como as maçãs amanhecem no esplendor prodigioso de ninguém olhar para elas.
Na cameleira o tempo batia todo de uma vez só e depois à volta do lixo a cameleira e o tempo haviam-se mudado uma ao outro.
O problema de em tempos ter estudado é as metáforas ocorrerem muito até numa rua destas, que é uma rua-rio como tantas outras, uma via de que o tempo se serve para mudar cameleiras e lixos e marinheiros em terra.
Prosa de Feira
Movimentos de pessoas, viaturas, ventanias, sombras – como marés enroscadas num eixo.
Olhares e pontes partilhando isto: a travessia de águas.
Coincidência de se ser sonhado fora do corpo com os já-vividos que alter(n)am a consciência – e a coincidência mesma.
Centelhas de metalúrgicos, centelhas de vulcões, paralelismos da matéria com a matéria que invalidam a teologia toda e mais alguma.
Pessoas fechadas em quase-aldeias, com armas em casa e animais prisioneiros delas súbditos.
Carreiros assoalhados de areia em pinhais íngremes para o mar.
Manhãs de mercado popular a céu aberto, profusão de queijos, batatas em sacas de rede, galerias argentinas de peixe muito fresco, tabernas de que mana um perfume forte de dobrada com feijão, carne assada, frangos crucificados em gólgotas de carvão, roxuras de vinho, braçadas húmidas de flores, segredos altifalantes, bois grandes como igrejas, cães pequenitos e rápidos como andorinhas, adolescentes art&oficiando paraísos de fuga, ceguinho com lata-ranhura ao peito, chineses silenciosos sempre a oriente, irmãzinhas conventuais orando doçarias, os dois comunistas reformados da terra batendo dominó até à vitória final, a joalharia explodida das peanhas de fruta – e em alguma casa, chegada a noite, alguém sonhar com alguém.
Um Sentimento de Pertença
Um sentimento, apesar de tudo (que é sempre quase nada), de pertença – de pertença até à passagem. Algo assim passa pela cabeça de Coralina Reis, que aguarda o carro conduzido pelo segundo marido dela – e ela espera dele que seja o último – junto à torre do relógio que se ergue há cinco décadas ante o areal da cidade marítima. Muitos funcionários públicos se enganaram já, chamando-lhe Carolina nos documentos timbrados. Mas é Coralina – e Maria e Santos e Reis. Já foi Almeida do primeiro homem mas deixou de ser. A chuva é diagonal, mas o tejadilho da paragem de autocarros protege-a da intempérie. O entardenoitecer de Inverno não a caçou desprevenida. À saída do trabalho, tomou chá no Avenida, comprou pão para o jantar. Agora, junto à torre do relógio, sente-se pertencer. Gosta do que passa: os matrimónios reunidos em carritos iguais, os edifícios resistindo como podem à ocasional insensatez das tormentas, o vermelho-lacre do farol velho, a sebe que delimita o Tennis Club do tempo dos Ingleses, os alcoólicos sociáveis em mesas separadas na cervejaria-marisqueira. Coralina e o segundo – e esperadamente derradeiro – marido trabalham em turismo. Têm uma agência de viagens. Abriram há poucas semanas uma sucursal. É de onde há-de chegar Mário Pinto Garção Finca, homem capaz de gerar em Coralina um sentimento de pertença, mais até do que à passagem.
23/02/2010
Flores para Rosa Margarida
Diferenças no Sestubear
Turquemeus piastras por 'í além
de riquexéus entiras quartelente.
Sestubear em gão é diferente:
tem tanto de poci como pocéu.
Lerditubiras rincam madrepós
em talupia-pia tertomar.
Sestubear em vão é como a gente:
tem tanto de só-si como de sós.
Junquiras rada tontam astrocéus
hacá de framboísmos retinados
e de praias-de-omaha retinentes.
Mas já quem vira-vira caducéus,
além de tertomares talupiados,
jé sestubeia sempre al-diferentes.
22/02/2010
De uma Junção de Rios
Sei de uma junção de rios de delicados areais.
Penso por vezes nela e neles como em pessoas reais.
Alternam a jornada de sol e a de nuvens.
Por vezes, o céu desce a tocar-se nas águas.
Não é muito fervor, o fragor das correntes.
Por vezes, parecem linhas de seda, os rios.
Nasceram da mesma mãe sem pai, os rios.
Encontram-se ali, onde os escrevo.
Há a possibilidade de renomear tudo.
As pedras que marulham os leitos são:
litânias, xerozes, gualdipas, riconêmeas.
As árvores que emolduram as águas ao ar são:
capélias, albacentes, polimitos, jesusmarias.
As aves que se atiram de cor às cores são:
felícias, aquineves, urmelitas, bocasdoces.
As pessoas que poucas vezes por aqui há, são:
Mem Gomes, Jura Bosque, Vata Só, Cordia Luz.
Os peixes dos juntos rios são:
revogas, xarépios, acordinos, merussípias.
Os rios são: Rio Senhor e Rio Senhora.
Todas as manhãs acordam ao mesmo instante,
de mãos dadas já e ainda, cruzadas as linhas
de seda.
Ribeira Negra Areia Brava
Viver é uma espécie de temporal assolando a região pensativa,
derrocadas previstas cedo ou menos cedo desabam
fés, dogmas, certezas, parentes,
cinturões fabris consomem a luz dos olhos e a seiva das mãos, nem todas
as pessoas ligam muito à insolvência invernosa do coração, algumas
ainda assim fazem pela vida poupando lenha e conservas e azeite e farinha,
andorinhas de barro negrejam ainda desabitadas empenas de cal avoenga,
pelourinhos sinalizam a cárie dos séculos,
as crianças patinham no paraíso depois lama,
às vinte e sete trinta e dois mortos confirmados na Madeira,
pobres cápsulas ex-cristãs e ex-viventes e ex-votos e ex-tudo,
isto só pode ser obra de um tal deus,
obra da resignada impotência edificadora da
santa-sopa-dos-pobres,
como fazem na Finlândia não sei,
aqui segue-se pela televisão a tragicomédia popular
de tão pouco Cristo para tanto cristão,
isto só pode ser obra de haver tão poucos praticantes,
tantas ribeiras doidas ao cabo de cinco minutos de chuva intensa,
em Peniche quatro pescadores foram tragados pelo mar,
a dor humana cerra as mãos e não aperta nada,
areia parece confirmar-se a nossa mais íntima vocação sideral,
enquanto o Sol não arrefece de vez,
enquanto o peido de prata da Lua não acaba de ser dado,
protecção civil, especialistas meteorólogos,
caprichos termodinâmicos,
assusta-nos o risco dos nossos filhos,
envernizadas laranjeiras sofrem o vento cervical,
transidos gatos e cães encolhidos suportam o frio glacial
da efemeridade,
nos cafés o patrão e a patroa contam sombras de moscas,
as tabuletas metálicas guincham ferrugens reumáticas,
não é fácil convocar a estesia do temporal,
não quando os mortos despojam as ruas,
não quando as ribeiras se desaforam marítimas,
que palavras agora para as famílias
dos trinta e dois mais dez da Madeira,
para as dos quatro de Peniche,
a impunidade do tal deus é soez
como soezes são as imolações que ele papa
ao chàzinho da puta da eternidade,
Ribeira Brava tão brava,
Areia Branca tão negra,
sapadores desorientados à salsugem,
geral consternação de pivôs e convidados,
entre mortos e feridos os mentirosos piedosos
alinhavam costuras lamentosas,
amanhã chove, depois de amanhã fará sol,
então veremos ou não.