27/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 10



10. PANOS POBREZINHOS

Coimbra, quarta-feira, 9 de Junho de 2010


Não está frio, de modo algum está frio – mas a véspera do feriado patriótico é de invernia. Águas e cinza sob céu de folha-de-zinco. Na Cidade, quanto não é pedra mas terra bebe o fresco. Com interregno breve por meados da década 90/XX, estive fora daqui mais de vinte anos. Duas décadas é muito tempo na vida da formiga – e na do cão também. Olhar em frente, porém – e para os lados.

Casa-Museu Bissaya Barreto, aos Arcos do Jardim; o papa polaco armado em sinaleiro; um mcgyver’s ou coiso onde era o Mandarim; prédios devolutos em barda; Escola Jaime Cortesão (à noite, os empregados de escritório vinham, completavam as cadeiras em falta – mas era quando as aulas eram aulas mesmo, não, como agora, imitações de ensino); esta Rua da Sofia está bem documentada no Pedro Dias (voltarei/emos a ela); ali era o Tito Cunha, já não é; Ladeira de Santa Justa; rapazes vintões de fàtigravata: banca, seguros, vendas, representações, brindes de publicidade, evangelistas, agentes autorizados de arrumadores de estacionamento; nisto, Estação-B-Coimbra-Velha. No comboio, componho uma balada.


QUE EU LIS NÃO SOU, MAS FELIZ MONDEGO


Choupos, tais tecidos,
panos pobrezinhos.
De frio transidos,
voam passarinhos.


Rio, de que ris,
se é frio o sossego?
Rio daquele Lis,
Que eu sou Mondego.


(refrão:)

Esp’rança nenhuma, nenhum desespero.
Coimbra, há só uma – e outra não quero.


É filha da Lua,
esta nossa terra.
É minha, é tua,
não é mar nem serra.


É uma face mansa,
trança de menina,
que já foi varina
mas sempre criança.


(refrão:)
Esp’rança nenhuma, nenhum desespero.
Coimbra, há só uma – e outra não quero.


Enquanto viver e puder, escreverei estes verdes, esta exultante e exaltada euforia vegetal dos Campos do Mondego. O humilde couval como o absorto ulmeiro, o desgrenhado canavial como o triste salgueiro. Em tenda finimatinal de chuva e fresco brasido de borralho como esta, então, muito melhor. Não trouxe casaco ou camisola. Vim em mangas de camisa, colhendo do primo terço quase completo de Junho a amenidade e a tepidez. Mas os olhos assimilam a imitação do Inverno: raríssimo azul entreabre as massas da Abóbada. Por bandas de Taveiro, duas cegonhas: deixá-las ir.



Gradação maravilhosa em Língua Portuguesa – labor e lavor. Ofício, oficina e oficial (labor) consubstanciados em obra/objecto (lavor). De um b para um v, arte e artista tornados facto e artefacto. Maravilha.



Há muita Vila Pouca. Mas pouca – ou nenhuma – Vila Muita.



Sim: tudo isto é antes da morte e depois da vida.



Rapace, o milhafre trabalha em círculos como antigamente o boi cego em torno do poço. Farfalham as mais altas árvores.



Quem não sentiu já a concentração do cedro? Sua suma contenção de seiva, seu total perfil sem frente, sua sina de sentinela insone, sua absorta apreensiva atenção aos desmandos das gentes – o cedro é bem irmão do cipreste. E eu, de ambos.



Alfarelos, nó não górdio ou cego do Mundo. De facto sita na Granja do Ulmeiro, a estação é nome grande no mapa ferroviário nacional, merecendo equivalente patamar ao do Entroncamento. Às segundas-feiras, aquela casa-de-pasto ali (esquece-me de momento o nome) serve carne de vaca guisada com massa e ervilhas. A terra vive muito da ferrovi(d)a. Já na de Vila Nova de Anços, demarca-se a visão do cemitério: profusão maioritária de mármores negros, ao contrário da regra, que sublima os brancos. Então, deflagram os campos de arroz, veros espelhos-de-água hirsutos de um verde que apetece chorar. E manchas verde-negras de pinhal, hortas pequeninas e muito bem cuidadas, cães livres patrulhando o país local, Soure, serração, ADP Fertilizantes, ovelhas que semelham pompons vivos, taludes e rosais silvestres, Centro Social do Sobral, casebres e vivendas tipo mêzon, laranjeiras pequeninas e molhadas como beijos de criança, vias, ’inda, de terra batida, Simões (terra natural do meu Amigo Manuel Pinto Baptista), passadiços pedestres elevados, não extensos vinhedos domésticos, ninguém, absolutamente ninguém à vista, céu húmido sim e sim terras olhadas e molhadas, fazer o possível por não morrer, não morrer nem de fome nem de tristeza, duas principais causas de morte dos cães livres, quem diz livres, diz livros, Pelariga a bombordo, a estibordo apascentando-se uma bela manada de bovinos cor-de-mel-escuro, e então a maravilha gráfica e solitária de um cavalo, um só, a boca lendo no chão as palavras verdes da erva, Almagreira é por aqui perto, o meu coração também não anda longe, amieiros, oliveiras anãs, muito me comove tudo ser tão de borla, tanta Beleza tão de borla, que outra coisa seria (não é) gratuita, nisto – Pombal.



Pombal. Almoço no Cardigo. Coelho com feijão e couve. Manuel Sapateiro. Manuel Peixeiro. João Bicho. Fernando Fernandes Costa. Senhor Ilídio & Dona Rosa. Depois, formandos meus: Fred, Ric, Hugo. Boas palavras, boas tardes. A seguir, o doutor Evaristo Moura Fragoso liquidar-me-á o dente canino. Finalmente.



Céus primários e católicos de quando eu era
moço e primevo como a Primavera,
dai-me ao menos a absolvição
de, pensado, tentado a redenção.



Tirai-me do sol se chover tanto
quanto eu já chovi pessoalmente.
É dif’rente lutar sem véu ou manto,
que a tanto não chega ser diferente.



E, se chover, que chova na riqueza,
que a pobreza sempre chove alheada.
Mais nada justifica a vileza
da mesa que nada tem com mais nada.

1 comentário:

Joaquim Jorge Carvalho disse...

"Tudo isto é antes da morte e depois da vida" é precioso, mas talvez pudesses trocar, aqui, a (dgo eu) hipérbole pelo (digo eu) rigor: "Tudo isto é antes da morte e depois DE vida".

De toute façon, la merveille habituelle.

QJ

Canzoada Assaltante