6. NOVA CORRIDA, NOVA VIAGEM, UMA NOITE POR DIA
Coimbra, sábado, 5 de Junho de 2010
Dia novo, nova corrida, nova viagem. Plano: a bordo já do comboio em Coimbra-A (o8h45m), rumo à Figueira da Foz, chegar, telefonar ao João P., seguir com ele para o Louriçal, almoçar pinhalmente na casita da Lagoa do senhor Marques nos Matos da Vila, café no Sol Dourado do senhor Henrique “O Velho” dos Santos, esperar a Jessica para a explicação das 16h30m e pelo Kevin da das 18h30m. Depois, ou regresso pela Figueira ou por Pombal. Não é um mau plano.
Entre o despertar no quarto (07h15m) e a bilheteira da Estação Nova, caminhada fresca pela rarefeita Cidade. Uma boa chávena de café numa pastelaria tão vazia ainda, que nem moscas tinha. É uma coisa boa, para mim como para as aves do Parque (melros, patos, pardais, pombos), que os transeuntes abandonem pela calçada restos de bolos e de pão. Colho tais sobras, esmigalho-as no relvado do Jardim, fico a ver o ajuntamento voraz dos seres alados. É um pouco como ser Deus.
À janela móvel, visão do Choupal. Breve, espero, revisitarei esta catedral da Natureza. Trarei o meu caderno no bornal, algum livro e alguma comida & água e alguns olhos.
Viagem boa: Mário Ventura e Camilo Pessanha vão comigo à Figueira. E é pela data de uma carta de Camilo P. a Henrique Trindade Coelho (filho de José Francisco de T.C., o autor célebre e celebrado de In Illo Tempore e Os Meus Amores) que descubro qual o dia da semana em que nasceu o meu Pai – uma terça-feira. Nascido a 10 de Abril de 1917, só pode ter sido a uma terça porque o Poeta epistológrafo data a carta a Henrique Trindade Coelho assim: “Macau – Abril, 8 (domingo de Páscoa), 917”. Boa descoberta.
Entretanto, a composição faz entrada na foz do Mondego. E o meu velho deslumbramento não falha: que encanto, esta veia, este milagre de um rio fazendo-se mar, água doce da Estrela agora sal do Atlântico! E esta luz tão invencível, que apetece, nas árvores povoadas de peixes, surpreender aves que nadam e pessoas que barquejam. Já por aqui morei, espero voltar a fazê-lo. Tenho de fazer por merecê-lo, apenas isso.
Vou à Delmar, compro duas (ricas) empadas, que como pela rua a caminho do Café Estuário, velho estabelecimento que dá rosto ao porto comercial, onde pontificam as gruas da estiva. Pergunto ao dono da casa pela senhora que, há tantos anos infantes, se sentava aqui à porta com banca de caranguejo da pedra.
– Morreu.
E pronto.
Enquanto o João não vem, breve conversa telefónica com a AR. Tempo algo encardido, de luz garrotada pelas nuvens de ardósia. Mercedes pelas avenidas. Ciclistas modernaços em filosofia de vida-BTT. Às Festas da Cidade Figueira da Foz/2010 vêm, a 18 de Junho, o José Cid, e, a 19, o insuportável coimbrinha André Sardet: pobre S. João. Faz este ano duas décadas em ponto que me convidaram para padrinho da Marcha da Fontela. Ganhámos, claro: a Fontela ganhou sempre que participou nas marchas sanjoaninas. Duas décadas: sacana do Tempo. Pausa para mais Pessanha e mais Ventura, agora.
Agora, já lá vai o almoço-merenda na Lagoa dos Marques, aos Matos da Vila, Louriçal. Tarde boa. Até nadei por aposta: ganhei vinte euros. Ajudei a resgatar dois pinheiros muito jeitosos, para lenha, que tinham caído à água. Carne de porco, salada de pepino, cebola e tomate, batatas, broa, vinho, cerveja, laranjada, café, sueca de cartas, convívio, relaxe: um autêntico health-club.
Regresso a Coimbra pela Figueira da Foz, comboio às 19h45m. Há sábados (e vidas) piores, suponho. Uma fadiga doce. Não sei se não vou adormecer no comboio. Projecto pós-ferrovia: chá de limão no Nosso, prosseguir leituras, venturas e pessanhas. Para já, (des)fazer tempo no Estuário, de novo no Café Estuário a cujo portal antigamente a senhora dos caranguejos. Apurei pelo João P. que se tratava da “mulher do Azevedo”. O João P. foi-se embora à vida dele na casa dele, entrei no Estuário para efeito de refresco e contemporização, disse ao dono o que o João me tinha dito. E ele:
– Pois era. Ainda agora aqui esteve a filha.
Pois é, digo eu: um dia destes, ainda agora aqui estivemos.
Terno retorno. Entardenoitece a jornada quinta junina. Figueira da Foz; Fontela-A; Fontela; Lares e ss. Breve não veremos a terminação do rio, breve adentraremos a vastidão dos campos de arroz e de milho, em um avo retomaremos do rio a condição urbana e meã.
Afinal, não adormeço em curso. Adormeceram sim dois rapazes à minha frente. O do lado esquerdo parece um anjo gay dado a soporíferos: blusa preta de cavas, calçãozinho de algodão cinza muito fino, chinelinho-chinesinho de borracha branco de enfiar-enfiar o dedo. O da direita é de beiçoleta grossa, queixo enfiado, testa ampla, tez amorenada de potro, sapato de vela, calça de terileno, lacoste preta como o cabelo, bem cortado aliás. Dormem bem, os meninos. Não se conhecem um ao outro cá fora, mas pode ser que se encontrem algures no son(h)o. Nisto, visão dos grandes milhos, do rasteiro arroz, dos casais planos que calcificam a humanidade dos campos, de Verride, da natureza pulmonar e ramalhante das grandes árvores bêbedas de tão fartas águas, do Marujal. Como viajo em assento lateral, propicia-se-me a óptica dupla: sobrepostos, os planos da visão directa em frente e o do reflexo da vidraça a que dou costas: natureza de natureza, plano de plano, olhar de olhar, ilusão de ilusão.
Agora: um derradeiro sol vence o cartão do céu e brilha branco. É pela chegada e passagem a/por Montemor-o-Velho. Também o chegar encanta, Bencanta. Transbordo em Coimbra-B. Depois, a Noite, o chá de limão.
Antes ’inda da noite, uma volta por outras instâncias e circunstâncias de Coimbra: Largo das Ameias (Hotel Mondego); Rua do Poço (Pensão Flor de Coimbra); Terreiro do Mendonça; Travessa das Canivetas (Casa das Bonecas); Beco de Santa Maria; Rua das Azeiteiras (Restaurante-Adega Funchal e Barbearia Elegante); Rua Corpo de Deus (Petúnia Florista); Avenida Sá da Bandeira (onde espero que o Monumento a Luís de Camões – datado, salvo erro de memória meu, de 1880 – finalmente repouse sem mais trapalhadas de mete-e-tira-e-põe-e-muda).
Precisamente ante o leão que subjaz à lauricoroa camoniana: aqui sim, a esta hora (20h46m) de um dia de Junho, dá para assimilar em pleno a luminosa e melancólica doçura da minha Cidade de ocaso, que não de acaso. Para bandas do mar, um derramado fulvo é ainda ouro e vai ser coração de romã. Para cima, além da Manutenção Militar, as casas sobem a quanto céu podem – e não tão pouco ele é quanto isso. À esquina, a tão antiga Escola Central Primária de Santa Cruz faz ’inda de menina: e fez cem anos o mês passado, também. Subindo, a maravilha nunca de mais louvada do ordenado arvoredo. Além, o quê? Mais Coimbra.
Júlio Henriques é nome de botânico existido entre 1838 e 1928. Também é nome da alameda que vai dos Arcos do Jardim até lá baixo à dos Combatentes. Boa ideia, já que ao lado é o mui formoso Jardim (também) Botânico. Esquino depois a Rua Camilo Castelo Branco, o atormentado génio da Língua Portuguesa que respirou entre 1825 e 1890. E então, uns metros à frente, cedo à nostalgia.
Entro na Antiga Leitaria do Castelo (ou Leitaria do Raul). É outra vez 1982, assim de repente. Vou com a minha tão querida Amiga São Pinto. Vamos à especialidade da Casa – a tosta de galinha. Saiu há pouco o Por este Rio Acima do Fausto. O García Márquez ganha o Nobel. Faustávamos e cemanosdassolidãozávamos. Algumas vezes nos ríamos de nós mesmos: porque, às terças-feiras, nos esquecíamos de que era terça – e dávamos com os narizes, cada um com seu nariz, no aviso de descanso semanal do pessoal do estabelecimento. A única maneira que tenho de revivê-la (e de fazê-la reviver) é esta. De nada me/nos serve, eu sei. Hoje é sábado, São, está aberta a Leitaria.
Pouso e repouso, pois no Raul. Empalidece até à lividez o cenário côncavo do firmamento. O Jardim Botânico vence uma espessura de tinta-da-China. Do meu lado direito, dando a face à Alameda Júlio Henriques, há um palacete cor-de-rosa (mas não é pela cor) que desde para aí os meus dezasseis fundo com as linhas iniciais de Os Maias, as que nos levam pela mão ao Ramalhete. Arrefece, mas não de mais. Junho é uma bênção, uma bênção siamesa da de Setembro. Um táxi na Avenida Dr. Marnoco, onde o Raul. Sai o freguês, um rapazola de calções e cabelo amarfanhado em totó no occipício (ou púcio, sei lá, quero lá saber). Antigamente, as mulheres que vendiam caldo verde na praça é que usavam totó. Agora, os totós também usam totó. Adiante. (A São Pinto – Cinha, para a família – era de uma beleza interior que só encontrava rival na quase insuportável perfeição do rosto: os olhos de uma bondade boreal, a boca valendo por um morango doutor em simetria, as maçãs das faces superlativando a condição camoesa, o cabelo perfeito. Também às terças.)
São 21h39m. Nem eufórico, nem desesperado. Apenas vivo. Toda a gente vive apenas – e a penas. É normal. Se calhar, é até saudável. Não sei. Não sei tudo. Não gostaria nada, aliás e sequer, da possibilidade de saber tudo. Tenho um caderno. Um caderno e uma noite por dia. (Estou mesmo a ver que me vai sair versalhada não tarda nada:)
IDEÁRIO DE COIMBRA
A manta é curta mas deita-te um pouco,
a vida é breve, é só o que é.
’ind’ ontem passei por um tipo que é louco
– e passei por outro que o não sei se é.
Dá-me a tua graça, o teu pundonor,
o teu epicédio, teu citrino olhar,
a tua chalaça, teu tira-sem-pôr
e a tua desgraça, undécima dor.
Tenho, Coimbra, sido ausente até da comum lucidez, feito coisas impensadas e impensáveis. Tenho amado mal, embora muito. Escrito, tenho escrito. Mas para quê, não é? Olha, escrevo para ti – que nem ler sabes, coitada.
1 comentário:
Duas décadas? Sacana do tempo.
bjs, amigo.
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