Falhei a vida mas a morte me não falha,
a terra a quem a trabalha.
Trabalhamo-la todos, digo eu.
A oriente, cartão de dentros de sapatos em montra, massa de plumb’água que a Noite abaterá sobre a humanidade de Chão do Bispo, Tovim, Eiras, Ingote, Pedrulha. Sim, mas de manhã dei pães a patos: ganhei-me-lhes o Dia. Gosto do casalito: ela, muito fêmea, suportando-lhe as galarias e o pé-de-alferes; ele, de pescoço verde-cabaia-chinesa, elegantíssimo, andar de operário em andaime tremente. Esperamo-nos mutuamente, a Noite e eu. Para o jantar, arroz. Depois, ir ao chá, levar um ou dois livros, poupar nos cigarros para o bilhete de comboio (Pombal), bocejar de mão na boca. Assistir ao ofício existencial dos malucos pelas ruas (não devem ser muitos hoje, dada a meteorologia – que eles são malucos mas não são doidos). Não estar (sendo-o embora) tão triste/desinfeliz: é/há só esta vida, estragá-la (mais) é proibido. Agora, o arroz.
Ao quarto para as onze da noite, chove. É uma tormenta plácida: a precipitação, de uma precisão suíça, mescla em matéria e ritmo os dois Tempos lógicos: o crono e o meteoro. Contra o pano preto, de cenário neutro, resistem como podem os dizeres luminosos da publicidade. O Estádio, as bombas de gasolina, os cafés, os semáforos. O oitavo dia de Junho acaba em água mansa, assim.
Entretanto, o pássaro polaco é preia fácil do gato espanhol: em jogo de preparação para o Mundial da África do Sul (começa esta sexta-feira, 11), os súbditos do Rei Juan Carlos dão (deram, acabou agora) seis a zero aos conterrâneos do Desordeiro, o papa anterior a este pastor alemão. Que se lixe a bola, enfim. A minha atenção está quase toda no prefácio que Camilo Pessanha redigiu para o livro Esboço Crítico da Civilização Chinesa, da autoria do doutor J. António Filipe de Morais Palha, editado em 1912 pela Tipografia Mercantil, de N. T. Fernandes e Filhos, em Macau. Pode muito bem, portanto, chover lá fora, que aqui viaja-se no Espaço-Tempo pela mão e pela tinta de um homem que, enorme poeta, foi emérito prosador também – ou ainda. À lista de livros em andamento ou breve espera, juntei esta tarde um clássico muito nosso: Os Meus Amores, de Trindade Coelho (mas o pai, não o filho com quem Camilo se correspondeu amigavelmente). A seu tempo, tudo a seu tempo.
Na mesa que me fica à esquerda (O Nosso Café, ao Calhabé), esteve há pouco um portador de olhos azuis. Estava alcoolizado (muito), mas tomou uma aguardente copiosa mesmo assim, a par do café. Era completamente pacífico. Pagou a despesa à vinda da encomenda, não se lhe ouviu um som enquanto aqui se demorou. Saiu em difícil locomoção, um pouco do rêgo do traseiro descortinado pelo abate parcial das calças de fato-de-treino. Como ele, já muitas vezes terei feito figura homóloga. Sim, fez-me pensar, aqueles olhos fizeram-me azul de pensar. Cada um deve, se o quiser e/ou puder, pensar ser mesmo azul. Quanto a moralidades e a moralistas, estimo bem que estes e aquelas se fodam.
Amanhã é dia de ir a Pombal. Espero regressar sem abcesso, sem canino, sem dor e sem pena de já não sorrir largamente como em jovem cão com os dentes todos.
Despeço o dia com dois pares de versos. São, os dois primeiros, de Uang-Ting-Hsiang (também conhecido por Uang-Tsz-Heng). Circa 1487 a 1505. Os dois finais são da autoria de Hsii-Chên Ching (ou Ch’ang-Ku), contemporâneo de Uang. As traduções são de Camilo Pessanha e foram publicadas no ano de 1914 em Macau (no jornal O Progresso).
Os antigos mortos, invisivelmente,
Vêm ainda ao seu terraço antigo.
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É noite, e da minha mansarda ouço chover
– Sozinho, na cidade de U-Ch’ang.
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