4. CORPO DE DEUS, SÓ O DO SOL
Coimbra, 3 de Junho de 2010
Hoje é feriado nacional por causa de uma patranha invisível (mas colorida) chamada superstição. Parece qu’é Dia do Corpo de Deus, não sei porquê nem me apetece (agora) saber.
Rompi madrugada adentro e afora com a leitura deliciada da “Ramalhal figura”, como lhe chamava o divino Eça: de Ramalho Ortigão, hauri Uma Visita de Pêsames (hilariantíssima prosa) e O Último Prego (mais actual do que seria provável, o assunto do artesão que se suicida porque o mercado é invadido pela produção vinda da estranja). Agora, à sombra tépida de uma esplanada de mesas de baquelite vermelha – Pizzaria Solum, 13h06m – preparo-me para assimilar duas memórias prosódicas: a de Mário Ventura em Quarto Crescente e a do raro Camilo Pessanha em Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e Textos de Temática Chinesa, que António Quadros organizou e anotou em boa hora.
Derredor, o sol de Junho inventaria a Cidade e o Mundo, parafraseando (no “Junho” e no “inventaria”) o belíssimo título criado por Teixeira Gomes (que ainda não li, mas hei-de). A tarde é o contrário de uma gaveta, mas, como as gavetas dos antigamentes, esta luz cheira a maçãs camoesas, a pés de verbena e a almíscar de guardar camisas. (Benditos Ortigão e Malheiros Dias, cujas linhas me trouxeram o almíscar, a verbena e as camoesas.) Entretanto, mudo de mesa porque Sua Majestade Rá toma de assalto esbraseante o tampo daquela sobre que Pessanha e Ventura.
A esta hora (quase as três da tarde) mesma, não é difícil perceber que nas maternidades e nos hospitais da Cidade simultâneos nascimentos e passamentos se dão à luz, os primeiros, e à treva, os últimos. Mulheres clonam-se carne, sangue, ossos, unhas e cabelos em vergônteas infantes. Pessoas passam o rio derradeiro, perto. Na Dinamarca é o mesmo, eu sei. Mas agora só a Cidade me interessa. Vivo desta luz, que segue sendo toda a luz. Uma paz toma-me – como se eu fora água, como se a paz tivera sede. Não sofro ideias. É certo que na parede da mandíbula superior me lateja um abcesso canino, mas para outra coisa (para este caderno, enfim) me serve a boca. Leio devagar, escrevo devagar, vivo devagar. Também morro devagar e também devagar renasço. Isto de sentir é tudo letra a óleo sobre tela de papel. Fora do Nosso, o calor daria para torrar pão no ar e para estrelar ovos no rebordo de pedra da fonte. Há patos de pescoço verde-mandarim na relva da rotunda para que dá a varanda celibatária do meu quarto. Os polícias columbofilam, pesados, rondas bocejantes de dia feriado. Rapazolas de boné de pala revirada imitam acarneiradamente os ghettos do zamericanos afro. Ça ira, malgré tout. No Senegal é o mesmo, eu sei. Fazer tudo para que a beleza não seja uma falácia, embora a geral vida o seja.
A vaga de luz-calor vibra-vidra o ar: parece pensamento. Vale-nos, conimbricenses, uma brisa mondegueira que só posso comparar a translúcida serpente encantadora de pássaros e de epidermes afogueadas. É pela hora em que viver equivale a lentidão. Saio e ambulo. Levam-me pés que levo livres em sapatilhas largas. A quinta-feira, por alegada santidade, usa a largueza vã dos domingos. Ventura e Pessanha dormem no bornal – como parece dormir o Mondego represo no açude. Ciganos e pederastas sentinelam as linhas litorais direita e esquerda. Também eu sigo à margem – de tudo e de toda a gente: ou quase.
A pé, ao sol, da Solum, a-ver-vamos: vinde daí comigo. São as 16h59m. Nomes e actos do périplo: Travessa do Teodoro; Rua Manuel da Silva Gaio (escritor e poeta – sécs. XIX e XX – antiga Rua da Arregaça); painel a cores de seis azulejos 15x15 representando a Rainha Santa Isabel pintado pelo meu Pai encimando a porta do nº 58 da Rua do Brasil; panorama largo de Santa Clara, à direita, e de Banhos Secos, à esquerda; Parque Dr. Manuel Braga (homenageado pela Cidade no dia 23-3-1958); a petizada urbana, que nunca viu galinhas senão nuas e decapitadas e congeladas, diverte-se a correr almoravidamente atrás dos pombos do Jardim; passa um velhote, unionista como o Quim Jorge e como eu, mas de emblema à lapela; Hotel Astória: sem adjectivos; Rua Simão de Évora; Rua da Louça; (não havendo pressa nem sítio aonde ir, tudo é perto); siga; Casa do Sal (ponto tão antigo); Rua Figueira da Foz (onde, no primeiro quartel do século XX, o meu avô paterno, José Abrunheiro, mantinha um quarto de dormir – sendo um dos primeiros condutores de carros eléctricos da Cidade, nem sempre os turnos de serviço lhe permitiam ir dormir à casa de Antuzede); Beco do Arco Pintado; Monte Formoso; mas antes, pausa no Búzio Bar para repouso, assento e refrigério gasoso (na rádio-ambiente, som de The Power of Love, dos Frankie Goes to Hollywood); (pode ser, avento eu, que às lágrimas assista a virtude paliativa da talassoterapia); fronda-sombra-cal-sol-anil-cobalto-beira-leira-tarde-arde-jardim-anca-maçã-Ançã; junto ao parque infantil entre a Estrada de Coselhas e a ladeira do Monte Formoso, há uma das cápsulas sanitárias que há umas décadas “modernizaram” Coimbra, dessas de pagar pa’ cagar – um colega da Faculdade de Letras (ele era de Clássicas, chama-se Jorge Deserto) dizia, melífluo, que as nunca utilizaria porque um gajo se arriscava a, no fim do serviço, sair na Austrália; entram no Búzio (entretanto, cumprimentei o João Brasileiro filho, patrão da casa) três magníficos maduros de maduro ingestores; uma suave fadiga almofada-me o corpo (não o do Deus do corrente feriado); esplanadas de baquelite encarnada; e M. & I.
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