© Henri Guinier - Girl from the Sea Isles (from L’ Estampe Moderne)
12. RUMORES, AINDA ASSIM, NO CORAÇÃO
Coimbra, sexta-feira, 11 de Junho de 2010
Às cinco da tarde de dia 9 recente, o meu Amigo e doutor Evaristo Moura Fragoso tratou da saúde àquele canino infecto que me impedia quase, e até, de andar. Raiz ao sol, problema resolvido. Mas não muito sol – que o tempo meteo continua farrusco: geral humidade, frescura geral, lapsos de aguaceiro, Astro-Rei dado a timidez e embaraço.
Sensato, o Tempo relojoeiro
ensina ao viandante a moção mesma.
Torna diagonais os prédios a chuva fresca,
que Junho é senhor de horas amarelas.
Cinco pessoas no café, de óculos todas,
lendo inscrições todas epigráficas:
o anúncio do angariador/vendedor,
a oferta de si mesma da ajudante de cozinha,
a formação do perito averiguador do ramo automóvel,
a solidão do auxiliar de acção farmacêutica.
Pinguins sem ao menos neve ou gelo,
patinham os concidadãos a pedra-de-sabão
das calçadas portuguesas que Coimbra
estende em passadiço, moção e incerteza.
Para bandas do Estádio, os pardais
ladinam a felicidade incompreensível da
senciência.
Rumores, ainda assim, no coração
sempre que a fosforescência solar
logra romper o cartão nublado
superintendente.
Sombras sobem centelhas olhadas,
vermelhas, tolhidas, ruborizadas.
Vocação humilde: guardar lugar novo
para a reordenação das palavras antigas,
insensatas.
Fernando Pessoa a propósito de Camilo Pessanha:
(…) descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele.
E Miguel de Unamuno, em 1908, na sequência de ilustres suicídios portugueses (Mouzinho de Albuquerque, Trindade Coelho, Antero de Quental, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco e, anos depois de todos estes, Mário de Sá-Carneiro – alguns exemplos):
(…) povo triste, povo de suicidas, talvez um povo suicida.
À tarde. Na antemão do mundial da bola nos país dos canhangulos para efeitos de anestésico psicotrópico (meu como multitudinário). À passagem pela paragem de autocarros da Carolina Michaëlis, vi a mulher sozinha. As mulheres sozinhas parecem-me sempre ramo sem pássaro. Aquela tinha a aura irremissível da solidão, tinha. De vez em quando, manda fazer madeixas, coitada. Pode ser que não seja nem feliz nem infeliz. Pode ser que esteja viva. Anel às bolinhas na mão direita. (Como todos os retratos verdadeiros que tiro e fixo, este é feito de pequenas falsidades também.) Também me lembrou, ela, um corvo branco. Meã volumetria, mamas mínimas, roupa muito limpa, ar de quem não pratica canoagem nem António Nobre. Professora de contabilidade, quase de certeza. Filha de algum aposentado da Marinha ou da Hidráulica do Mondego. Mais amigas já divorciadas do que ainda casadas. Ela não, isso nunca, solteira de/para sempre. E não é feia. Olho de pardal antiguecido, maleta de fecho teque-teque. Sapatinhos de criança anacrónica: azuis. Deve chamar-se Isabel. Isabel Maria Brandão Montenegro. Um irmão falecido em criança, tinha ela doze, oito ele. Leucemia infantil. O menino era Raul. Raul Manuel Brandão Montenegro. Ela sai da Escola Brotero, o galão e a torrada à pastelaria ao lado da farmácia, apanha o autocarro, umas vezes sai na Dias da Silva, outras dá por si em Celas, outras na Nicolau Chanterene, outras na Rua das Formigas, outras acorda do torpor em Santa Clara, na Mendes dos Remédios. Nunca acorda do torpor com um homem. Uma colega de liceu beijou-a na boca no fim de um jogo de voleibol. Ela achou doce, molhado e quente e perigoso. Nunca mais levitou assim. Estou do outro lado da passadeira. Estou a escrevê-la na cabeça. Ela passa os olhos (não o olhar) pelo meu corpo. Sou transparente. Não estou aqui. Atravesso a rua, passo-lhe pelas costas, breve nos não recordaremos uma do outro, excepto eu. Eu, pássaro sem ramo.
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