Sintra, fim da manhã, e Massamá, tarde de 28 de Abril de 2010
Já o pensei algures e algures o escrevi já: que a nossa morte já começou – nos sítios onde estivemos e a que não voltaremos. Igual destino aconteceu a outra descoberta pessoal: a de que eternidade e ubiquidade não apenas rimam como são sinónimas. De facto, só a possibilidade de estar em toda a parte ao mesmo tempo nos garantiria uma espécie de para-sempre.
Estes disparates, aliás mínimos, acabam entestando a certeza de que a minha vida é agora-hoje e aqui-agora. Não sei como será, se for, daqui-a-pouco-onde. Ninguém sabe.
Começo este livro ao cabo de uma fugacíssima passagem finimatinal pela incomparável Sintra. Duas horas não são suficientes para que tal pérola, Sintra, figure no estojo deste livro, porém. Voltarei aqui? Não sei. Espero que sim.
O entretanto chama-se Massamá. É pelo início da tarde. Faz um sol algo febril. O céu parece um glaucoma. Luiz Pacheco morou por aqui algures. Agora já não mora, está só morto. Espero as quatro da tarde para ir falar com uma senhora que não conheço sobre um trabalho que não sei o que é. Sei, porém, o nome da avenida onde prolongo a inconsequente abertura deste livro irrelevante: Aquilino Ribeiro. Perto, há uma escola chamada Eça de Queiroz. Pacheco, Aquilino, Eça: muita literatura-em-figura, apesar de tudo. Li uma placa direccional: Monte Abraão. Ruy Belo, portanto. E, em Sintra ainda, estive na Sapa, para uma queijada e uma chávena de café. Aí nos recompensaram com a bela surpresa de uma visita guiada ao estabelecimento. A simpatia do gerente, senhor Américo Soares, propagou-se-nos à sensibilidade. Levou-nos a conhecer a casa: cozinha e sala-de-chá, em cima, e fábrica das queijadas, em baixo. A Casa, bem para lá de centenária, é de uma higiene desconcertante. Os sanitários cheiram bem: poder-se-ia, sem nojo algum, comer neles. E nas paredes, vizinhos de retratos antigos dos donos antigos, estão expostos trechos do grande Eça a propósito das queijadas da Sapa. Espero voltar, um dia em que a minha vida se não haja, ainda não, tornado noite.
Em Massamá, uma cadela cumprimenta-me na esplanada onde escrevo. Gentil, gorda de bem tratada, casaco-pêlo castanho-dourado, coleira vermelho-jade. Afaguei-a, deitou-se-me aos pés a absorver a sombra. Senhoras maduras, óc’loscurados, de carnações prósperas e roupas cortinglês, palram na mansidão da hora. Rumo à Praceta Gomes Eanes de Zurara, passa, alto, um decote moreno de infalível fofura encimando uma blusa de chita sarapintada de flores vermelhas. Trago ’inda os olhos encadeados da botânica de Sintra, mas a visão de tal par de mamas não escaparia nem ao Stevie Wonder. A bênção é transversal: um suavíssimo favónio vem zefirando través árvores ao corpo. (Quero dizer que corre brisa.) Ao alcance deste observatório, professorinhas de Massamá, aos trios como mãos do jogo da lerpa, progridem passeio abaixo rumo ao esquecimento das gerações e dos séculos.
Há um aspecto em que Massamá se parece muito com Pombal, Viseu, Moimenta da Beira, Tavira, Abrantes e Vila Franca das Naves: os televisores dos cafés estão todos sintonizados na TVI, essa espécie de peçonha oftálmica da alegada pós-modernidade. Suporto mal o pus desta ferida, pelo que me ponho na alheta. Chego ao Bom Sucesso e acampo. Há, claro, o Correio da Manhã. Pego nele, folheio as facadas e o evangelismo dos bairros sociociganos. Nunca aqui tinha posto os bestuntos, mas é com certo alívio que confirmo a absoluta lusitanidade de Massamá: dois miúdos cabo-verdianos trepam um coqueiro disfarçado de nespereira de quintal de vivenda; uma musa de nádegas em trevo responde isto em brasilês a um telemobilista invisível: “São só quarenta euro, quirido, maiz lhi faço tudo, viu?”; os reformados suecam a solidão em prédios devolutos; há centros de formação profissional; e nos mostradores de vidro os croquetes de todo o ano rivalizam com os caracóis dos meses da segunda terça parte do ano.
Depois, até casa, Lisboa, Sobral de Monte Agraço, Mafra, Malveira, Leiria, Meirinhas e Fonte Nova.
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