30/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 12 (a)

© Henri Guinier - Girl from the Sea Isles (from L’ Estampe Moderne)


12. RUMORES, AINDA ASSIM, NO CORAÇÃO

Coimbra, sexta-feira, 11 de Junho de 2010

Às cinco da tarde de dia 9 recente, o meu Amigo e doutor Evaristo Moura Fragoso tratou da saúde àquele canino infecto que me impedia quase, e até, de andar. Raiz ao sol, problema resolvido. Mas não muito sol – que o tempo meteo continua farrusco: geral humidade, frescura geral, lapsos de aguaceiro, Astro-Rei dado a timidez e embaraço.

Sensato, o Tempo relojoeiro
ensina ao viandante a moção mesma.
Torna diagonais os prédios a chuva fresca,
que Junho é senhor de horas amarelas.
Cinco pessoas no café, de óculos todas,
lendo inscrições todas epigráficas:
o anúncio do angariador/vendedor,
a oferta de si mesma da ajudante de cozinha,
a formação do perito averiguador do ramo automóvel,
a solidão do auxiliar de acção farmacêutica.
Pinguins sem ao menos neve ou gelo,
patinham os concidadãos a pedra-de-sabão
das calçadas portuguesas que Coimbra
estende em passadiço, moção e incerteza.
Para bandas do Estádio, os pardais
ladinam a felicidade incompreensível da
senciência.
Rumores, ainda assim, no coração
sempre que a fosforescência solar
logra romper o cartão nublado
superintendente.
Sombras sobem centelhas olhadas,
vermelhas, tolhidas, ruborizadas.
Vocação humilde: guardar lugar novo
para a reordenação das palavras antigas,
insensatas.

Fernando Pessoa a propósito de Camilo Pessanha:

(…) descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele.

E Miguel de Unamuno, em 1908, na sequência de ilustres suicídios portugueses (Mouzinho de Albuquerque, Trindade Coelho, Antero de Quental, Soares dos Reis, Camilo Castelo Branco e, anos depois de todos estes, Mário de Sá-Carneiro – alguns exemplos):

(…) povo triste, povo de suicidas, talvez um povo suicida.

À tarde. Na antemão do mundial da bola nos país dos canhangulos para efeitos de anestésico psicotrópico (meu como multitudinário). À passagem pela paragem de autocarros da Carolina Michaëlis, vi a mulher sozinha. As mulheres sozinhas parecem-me sempre ramo sem pássaro. Aquela tinha a aura irremissível da solidão, tinha. De vez em quando, manda fazer madeixas, coitada. Pode ser que não seja nem feliz nem infeliz. Pode ser que esteja viva. Anel às bolinhas na mão direita. (Como todos os retratos verdadeiros que tiro e fixo, este é feito de pequenas falsidades também.) Também me lembrou, ela, um corvo branco. Meã volumetria, mamas mínimas, roupa muito limpa, ar de quem não pratica canoagem nem António Nobre. Professora de contabilidade, quase de certeza. Filha de algum aposentado da Marinha ou da Hidráulica do Mondego. Mais amigas já divorciadas do que ainda casadas. Ela não, isso nunca, solteira de/para sempre. E não é feia. Olho de pardal antiguecido, maleta de fecho teque-teque. Sapatinhos de criança anacrónica: azuis. Deve chamar-se Isabel. Isabel Maria Brandão Montenegro. Um irmão falecido em criança, tinha ela doze, oito ele. Leucemia infantil. O menino era Raul. Raul Manuel Brandão Montenegro. Ela sai da Escola Brotero, o galão e a torrada à pastelaria ao lado da farmácia, apanha o autocarro, umas vezes sai na Dias da Silva, outras dá por si em Celas, outras na Nicolau Chanterene, outras na Rua das Formigas, outras acorda do torpor em Santa Clara, na Mendes dos Remédios. Nunca acorda do torpor com um homem. Uma colega de liceu beijou-a na boca no fim de um jogo de voleibol. Ela achou doce, molhado e quente e perigoso. Nunca mais levitou assim. Estou do outro lado da passadeira. Estou a escrevê-la na cabeça. Ela passa os olhos (não o olhar) pelo meu corpo. Sou transparente. Não estou aqui. Atravesso a rua, passo-lhe pelas costas, breve nos não recordaremos uma do outro, excepto eu. Eu, pássaro sem ramo.





28/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 11



11. MAGNÍFICAS EMARANHAÇÕES DO INVERNO EM JUNHO

Coimbra, quinta-feira, 10 de Junho de 2010

Despertei sem recuo às sete e picos. Senti logo a circunstância iminente da chuva. À saída, lá estava ela, esperando-me com aquela gravidade divertida dos que se precipitam. Dei uma volta, comprei cigarros dos mais baratos, às oito e qualquer coisa o Nosso estava fechado ainda, dei a volta e enfiei-me no quarto a curtir o meu Padre Brown. No momento (09h15m) em que escrevo, tenho ali o meu pato na rotunda que divido com o quartel da PSP aos pés da Elísio de Moura. Quatro pardais catam a relva com suas duras boquitas. A mulher do pato ainda não chegou. Tenho ali restos de pão e bolo para esta malta toda. Também tenho o meu Pedro Dias e o meu Camilo Pessanha para acabar de ler e anotar. Meto livros para dentro como combustível em depósito de popó. Faço bem, claro. Uma luminescência vem rompendo o cartão grosso do ar. Para as acasteladas bandas do Tovim, porém, a aura é plúmbea, carregada, cerrada, algodão-cotão de freira velha. Olha, um bom trecho de Chesterton (in As Estrelas Voadoras, quarta história de A Inocência do Padre Brown):

A tarde de Janeiro aproximava-se do crepúsculo e os canteiros encontravam-se banhados por uma tonalidade rubra, que os enchia, por assim dizer, com os fantasmas das rosas mortas.

Muito bem esgalhado, sim-senhor. Assim, é uma alegria. Vale-me que me restam alguns milhares para ler com boa ortografia. Não adquirirei nem lerei nenhum que venha cuspido na lamentável “ortografia” estúpida e socrática e abrasileirada. Estimo bem que a esses “ortógrafos” vendidos e sencientes nasçam escarolas de eucalipto nas badanas entrefolhosas do cu.

E, num lance magnífico, o Grande Sol abre a sua Grande Rosa. Estou banhado em ouro. A orelha direita ronrona-me como um gato saciado. É sol de pouca dura, mas valeu. Deve ser isto o dia todo. Diz que até sábado o tempo vai estar assim, não sei.

De Amélia Pais, e por ser o 10 de Junho, recebi um poema de Camões. Em triste contraste, a militarada lá vai perfilar-se de fardeta nova em torno do professor residente da repolhólica. Isto dos presidentes serem professores cercados de generais cheira-me sempre a queimado, sei (bem) cá porquê.

09h41m: carga de águas. Rijeza de varetas pluviais. Um home’zinho de lacoste cigana verde-flúor a subir a Elísio sob o pálio breve do guarda-chuva: apanhado em cheio.

Agora sei: a minha poesia é vender castanhas no Verão e gelados no Inverno. Vender, não. Dar.

Foi, de facto, sol de pouca dura, aquele esplendor matinal. Coisa de fulgor, ouro de um minuto: como a infância. O resto do dia foi de um torpor soporífero. Depois de receber a SB na Solum (em frente ao Gira), retornei a casa para cochilar um pouco. Grelhei-me uma horita em brasas mornas. Depois, li Chesterton. Depois, acordei sem saber que tinha readormecido. O corpo apetecia chá de limão. Fiz-lhe a vontade. Tratei de um dedo, calcei-me, saí a chá e leitura. Umas poucas páginas para terminar o anjo-Camilo (Pessanha) e mais – ou Pedro Dias (talvez amanhã) ou Fitzgerald, S. Sim, Fitzgerald.

(Mas, claro, claramente, o claro dia novo virá, um dia. Hierática será dele a louçania – e sem pavor algum correrá nele o verso do vento e a estrofe simultânea da luz. Eu julgo que sim – e eu espero esse dia já ontem.)

Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo; e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis.

(Camilo Pessanha, in A Pátria, de Macau, a 7 de Junho de 1924)

NB: na nota de rodapé da pág. 191 de Contos, Crónicas, Cartas Escolhidas e Textos de Temática Chinesa, o organizador António Quadros indica que a Colecção de Arte Chinesa oferecida por Camilo Pessanha ao Estado Português se encontra no Museu Nacional Machado de Castro, aqui em Coimbra. Espero que sim, que esteja. Vou lá procurá-la. E a campa de Nemésio, em Santo António dos Olivais, volta a meu lume mental por causa de outra nota de rodapé (a 9, a páginas 174), que as duas versões de um provérbio chinês traduzido por Pessanha

(…) depois seriam incluídas na 2.ª e 3.ª edições de Clepsidra. Foram cedidas a Vitorino Nemésio, director da revista (Revista de Portugal), por Alberto Osório de Castro e Carlos Amaro.

Ou seja: o mundo é pequeno, mas (estes) dois poetas – Pessanha e Nemésio – são grandes: e lá arranjaram maneira de encontrar-se. As traduções/versões de Camilo saíram a lume no n.º 10 da citada Revista de Portugal em Novembro de 1940. E já agora: Alberto Osório de Castro era familiar de outro gigante, felizmente vivo ainda, da poesia portuguesa: António Osório. Magníficas emaranhações.

27/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 10



10. PANOS POBREZINHOS

Coimbra, quarta-feira, 9 de Junho de 2010


Não está frio, de modo algum está frio – mas a véspera do feriado patriótico é de invernia. Águas e cinza sob céu de folha-de-zinco. Na Cidade, quanto não é pedra mas terra bebe o fresco. Com interregno breve por meados da década 90/XX, estive fora daqui mais de vinte anos. Duas décadas é muito tempo na vida da formiga – e na do cão também. Olhar em frente, porém – e para os lados.

Casa-Museu Bissaya Barreto, aos Arcos do Jardim; o papa polaco armado em sinaleiro; um mcgyver’s ou coiso onde era o Mandarim; prédios devolutos em barda; Escola Jaime Cortesão (à noite, os empregados de escritório vinham, completavam as cadeiras em falta – mas era quando as aulas eram aulas mesmo, não, como agora, imitações de ensino); esta Rua da Sofia está bem documentada no Pedro Dias (voltarei/emos a ela); ali era o Tito Cunha, já não é; Ladeira de Santa Justa; rapazes vintões de fàtigravata: banca, seguros, vendas, representações, brindes de publicidade, evangelistas, agentes autorizados de arrumadores de estacionamento; nisto, Estação-B-Coimbra-Velha. No comboio, componho uma balada.


QUE EU LIS NÃO SOU, MAS FELIZ MONDEGO


Choupos, tais tecidos,
panos pobrezinhos.
De frio transidos,
voam passarinhos.


Rio, de que ris,
se é frio o sossego?
Rio daquele Lis,
Que eu sou Mondego.


(refrão:)

Esp’rança nenhuma, nenhum desespero.
Coimbra, há só uma – e outra não quero.


É filha da Lua,
esta nossa terra.
É minha, é tua,
não é mar nem serra.


É uma face mansa,
trança de menina,
que já foi varina
mas sempre criança.


(refrão:)
Esp’rança nenhuma, nenhum desespero.
Coimbra, há só uma – e outra não quero.


Enquanto viver e puder, escreverei estes verdes, esta exultante e exaltada euforia vegetal dos Campos do Mondego. O humilde couval como o absorto ulmeiro, o desgrenhado canavial como o triste salgueiro. Em tenda finimatinal de chuva e fresco brasido de borralho como esta, então, muito melhor. Não trouxe casaco ou camisola. Vim em mangas de camisa, colhendo do primo terço quase completo de Junho a amenidade e a tepidez. Mas os olhos assimilam a imitação do Inverno: raríssimo azul entreabre as massas da Abóbada. Por bandas de Taveiro, duas cegonhas: deixá-las ir.



Gradação maravilhosa em Língua Portuguesa – labor e lavor. Ofício, oficina e oficial (labor) consubstanciados em obra/objecto (lavor). De um b para um v, arte e artista tornados facto e artefacto. Maravilha.



Há muita Vila Pouca. Mas pouca – ou nenhuma – Vila Muita.



Sim: tudo isto é antes da morte e depois da vida.



Rapace, o milhafre trabalha em círculos como antigamente o boi cego em torno do poço. Farfalham as mais altas árvores.



Quem não sentiu já a concentração do cedro? Sua suma contenção de seiva, seu total perfil sem frente, sua sina de sentinela insone, sua absorta apreensiva atenção aos desmandos das gentes – o cedro é bem irmão do cipreste. E eu, de ambos.



Alfarelos, nó não górdio ou cego do Mundo. De facto sita na Granja do Ulmeiro, a estação é nome grande no mapa ferroviário nacional, merecendo equivalente patamar ao do Entroncamento. Às segundas-feiras, aquela casa-de-pasto ali (esquece-me de momento o nome) serve carne de vaca guisada com massa e ervilhas. A terra vive muito da ferrovi(d)a. Já na de Vila Nova de Anços, demarca-se a visão do cemitério: profusão maioritária de mármores negros, ao contrário da regra, que sublima os brancos. Então, deflagram os campos de arroz, veros espelhos-de-água hirsutos de um verde que apetece chorar. E manchas verde-negras de pinhal, hortas pequeninas e muito bem cuidadas, cães livres patrulhando o país local, Soure, serração, ADP Fertilizantes, ovelhas que semelham pompons vivos, taludes e rosais silvestres, Centro Social do Sobral, casebres e vivendas tipo mêzon, laranjeiras pequeninas e molhadas como beijos de criança, vias, ’inda, de terra batida, Simões (terra natural do meu Amigo Manuel Pinto Baptista), passadiços pedestres elevados, não extensos vinhedos domésticos, ninguém, absolutamente ninguém à vista, céu húmido sim e sim terras olhadas e molhadas, fazer o possível por não morrer, não morrer nem de fome nem de tristeza, duas principais causas de morte dos cães livres, quem diz livres, diz livros, Pelariga a bombordo, a estibordo apascentando-se uma bela manada de bovinos cor-de-mel-escuro, e então a maravilha gráfica e solitária de um cavalo, um só, a boca lendo no chão as palavras verdes da erva, Almagreira é por aqui perto, o meu coração também não anda longe, amieiros, oliveiras anãs, muito me comove tudo ser tão de borla, tanta Beleza tão de borla, que outra coisa seria (não é) gratuita, nisto – Pombal.



Pombal. Almoço no Cardigo. Coelho com feijão e couve. Manuel Sapateiro. Manuel Peixeiro. João Bicho. Fernando Fernandes Costa. Senhor Ilídio & Dona Rosa. Depois, formandos meus: Fred, Ric, Hugo. Boas palavras, boas tardes. A seguir, o doutor Evaristo Moura Fragoso liquidar-me-á o dente canino. Finalmente.



Céus primários e católicos de quando eu era
moço e primevo como a Primavera,
dai-me ao menos a absolvição
de, pensado, tentado a redenção.



Tirai-me do sol se chover tanto
quanto eu já chovi pessoalmente.
É dif’rente lutar sem véu ou manto,
que a tanto não chega ser diferente.



E, se chover, que chova na riqueza,
que a pobreza sempre chove alheada.
Mais nada justifica a vileza
da mesa que nada tem com mais nada.

26/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 9 (b) - conclusão

Na mente do suicida:



Falhei a vida mas a morte me não falha,
a terra a quem a trabalha.


Trabalhamo-la todos, digo eu.


A oriente, cartão de dentros de sapatos em montra, massa de plumb’água que a Noite abaterá sobre a humanidade de Chão do Bispo, Tovim, Eiras, Ingote, Pedrulha. Sim, mas de manhã dei pães a patos: ganhei-me-lhes o Dia. Gosto do casalito: ela, muito fêmea, suportando-lhe as galarias e o pé-de-alferes; ele, de pescoço verde-cabaia-chinesa, elegantíssimo, andar de operário em andaime tremente. Esperamo-nos mutuamente, a Noite e eu. Para o jantar, arroz. Depois, ir ao chá, levar um ou dois livros, poupar nos cigarros para o bilhete de comboio (Pombal), bocejar de mão na boca. Assistir ao ofício existencial dos malucos pelas ruas (não devem ser muitos hoje, dada a meteorologia – que eles são malucos mas não são doidos). Não estar (sendo-o embora) tão triste/desinfeliz: é/há só esta vida, estragá-la (mais) é proibido. Agora, o arroz.



Ao quarto para as onze da noite, chove. É uma tormenta plácida: a precipitação, de uma precisão suíça, mescla em matéria e ritmo os dois Tempos lógicos: o crono e o meteoro. Contra o pano preto, de cenário neutro, resistem como podem os dizeres luminosos da publicidade. O Estádio, as bombas de gasolina, os cafés, os semáforos. O oitavo dia de Junho acaba em água mansa, assim.


Entretanto, o pássaro polaco é preia fácil do gato espanhol: em jogo de preparação para o Mundial da África do Sul (começa esta sexta-feira, 11), os súbditos do Rei Juan Carlos dão (deram, acabou agora) seis a zero aos conterrâneos do Desordeiro, o papa anterior a este pastor alemão. Que se lixe a bola, enfim. A minha atenção está quase toda no prefácio que Camilo Pessanha redigiu para o livro Esboço Crítico da Civilização Chinesa, da autoria do doutor J. António Filipe de Morais Palha, editado em 1912 pela Tipografia Mercantil, de N. T. Fernandes e Filhos, em Macau. Pode muito bem, portanto, chover lá fora, que aqui viaja-se no Espaço-Tempo pela mão e pela tinta de um homem que, enorme poeta, foi emérito prosador também – ou ainda. À lista de livros em andamento ou breve espera, juntei esta tarde um clássico muito nosso: Os Meus Amores, de Trindade Coelho (mas o pai, não o filho com quem Camilo se correspondeu amigavelmente). A seu tempo, tudo a seu tempo.


Na mesa que me fica à esquerda (O Nosso Café, ao Calhabé), esteve há pouco um portador de olhos azuis. Estava alcoolizado (muito), mas tomou uma aguardente copiosa mesmo assim, a par do café. Era completamente pacífico. Pagou a despesa à vinda da encomenda, não se lhe ouviu um som enquanto aqui se demorou. Saiu em difícil locomoção, um pouco do rêgo do traseiro descortinado pelo abate parcial das calças de fato-de-treino. Como ele, já muitas vezes terei feito figura homóloga. Sim, fez-me pensar, aqueles olhos fizeram-me azul de pensar. Cada um deve, se o quiser e/ou puder, pensar ser mesmo azul. Quanto a moralidades e a moralistas, estimo bem que estes e aquelas se fodam.


Amanhã é dia de ir a Pombal. Espero regressar sem abcesso, sem canino, sem dor e sem pena de já não sorrir largamente como em jovem cão com os dentes todos.



Despeço o dia com dois pares de versos. São, os dois primeiros, de Uang-Ting-Hsiang (também conhecido por Uang-Tsz-Heng). Circa 1487 a 1505. Os dois finais são da autoria de Hsii-Chên Ching (ou Ch’ang-Ku), contemporâneo de Uang. As traduções são de Camilo Pessanha e foram publicadas no ano de 1914 em Macau (no jornal O Progresso).


Os antigos mortos, invisivelmente,
Vêm ainda ao seu terraço antigo.

******

É noite, e da minha mansarda ouço chover
– Sozinho, na cidade de U-Ch’ang.

25/06/2010

The ministril's adieu to his native land - John Thomas (harp)



The ministril's adieu to his native land, pieza de arpa de John Thomas. Obtenido de Easy pieces for harp Volume IV (Catherine Michel & Xavier de Maistre)
http://www.youtube.com/watch?v=HHGxisfGsyQ&playnext_from=TL&videos=5sfIL050uss&feature=feedrecmore

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 9 (a)


9. DEI PÃES A PATOS



Coimbra, terça-feira, 8 de Junho de 2010


E bons-dias. Dei pães a patos. Um casalito deles, muito bonito, (na)mora na rotunda relvada que vejo da minha varanda, mesmo ao pé da PSP e na base ascendente da Avenida Elísio de Moura. Gostaram da ideia e do pão. Guardei um para uns pombos e uns pardais que ando a criar ali perto do Girassolum. Também gostaram. Coisa que tenho notado é esta: os pombos de Pombal e os daqui da Solum/Calhabé são mais receosos e não tão profissionais quanto os do Rossio de Viseu. Estes só não se me penduravam nas orelhas e na braguilha porque o torrão viriático é muito católico. Mas subiam-me às mãos para não deixar que as migalhas chegassem à colega multidão emplumada por terra. Algumas saudades, enfim. Já lá vai, também enfim.

A marcador laranja-flúor vou traçando no mapa da Cidade os sítios já apeados por estes dias. Tomando como referência partida-chegada o meu quarto da Rua Gago Coutinho, marquei já: Avenida António Portugal (toda, naturalmente), Largo Padre Estrela Ferraz, Ruas Capitão Luís Gonzaga e José Alberto dos Reis, Avenida Dias da Silva, Ruas Miguel Torga, Carolina Michaëlis, Infanta D. Maria, D. João III, João de Deus Ramos, General Humberto Delgado, Feliciano Castilho, Brasil, Brotero e Combatentes da Grande Guerra, Ladeira do Seminário, Avenida Dr. Júlio Henriques, Praça João Paulo II, Rua Alexandre Herculano, Praça da República, Avenida Sá da Bandeira, Ruas Olímpio Nicolau Rui Fernandes e da Sofia, Praça 8 de Maio (antigo Largo de Sansão), Ruas Visconde da Luz, Ferreira Borges, Praça do Comércio (ou Velha), Largo da Portagem, Avenida Emídio Navarro, Parque Dr. Manuel Braga, Ínsua dos Bentos (Docas Novas), Avenida Fernão de Magalhães, Largo e Rua do Arnado, Casa do Sal, Arco Pintado, Monte Formoso.

Hoje é um hoje de lâmpada fosca. Céu baciíssimo, encerrado para obras de poalha de água-prata. Neste preciso instante (12h14m), desata a chover com entusiasmo. Tempo o mais excelente para uma endoscopia mental. Sou corrido da esplanada do Nosso pela chuvada, que, atravessada, não quer saber do toldo de lona que era suposto proteger este caderno insensato e inofensivo. Ainda não há-de ser hoje que descubro o leito final de Vitorino Nemésio. Paciência. O remédio é consumir a vela da tarde (a da manhã extingue-se agora) de volta da Arte e da História desta Coimbra monumental pela mão do Professor Pedro Dias, em sequência do (bom) serão de ontem.

Delícia:

“(…) grande cópia de anjos de boas dimensões.”


(Dias, op. cit., a pp. 52)


Ruas Afonso Duarte (poeta, 1884-1958) e General Martins de Carvalho (1844-1921).

Rosário Breve nº 160 - www.oribatejo.pt




Mago



Tudo no mundo está dando respostas. O que demora, é o tempo das perguntas.
Descoberta literária grande, esta em citação supra. É de José Saramago, em Memorial do Convento.
Era ribatejano, este José. Procurou Deus fora das igrejas e fora dos homens. Não logrou encontrá-Lo. Encontrou modo de ficar fora da vida e fora da morte. Escreveu o tal Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis. Não é nada pouco.
Repito a citação: Tudo no mundo está dando respostas. O que demora, é o tempo das perguntas. Eis, portanto, o senhor Isaac Newton debaixo da macieira, caindo a maçã, perguntando-se Isaac por que raio terá ela caído. Daí à Lei da Atracção Gravítica Universal e a Saramago, um instante mero no vórtice do Tempo.
O Vaticano gostou de que o velho comunista agnóstico tivesse morrido. O problema é nenhum: os papas também morrem, até os coniventes com o nazismo, como Pio XII. As inquisições nunca passam de moda, como aliás as maçãs não deixam nunca de cair.
Não quero saber. E outro não: não é a morte do nosso Nobel literário que celebro, mas a sua vida activa. Queria fazer determinada coisa, determinada coisa fez: bons livros.
Se foi do PCP, se saneou em 1975 o Diário de Notícias, se foi serralheiro, se foi casado com esta portuguesa e com aquela espanhola – quero lá saber.
Sei que as maçãs, como os homens, continuam a cair.
Só que alguns caem menos do que outros.
Levantam-se do chão.
Como, por magia, Isaac Newton.

24/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 8 (e) - conclusão


Noite, portanto. Impessoal mas saturada de humanidade como de açúcar um leite de peito, a Noite permita, a quem muito andou, voar um pouco. As minhas asas, para este serão, são de papel, como quase sempre. É papel impresso em 1983, desta vez. Deu-o à luz a portuense Paisagem Editora. Coimbra – Arte e História – Os Monumentos é obra do Professor Pedro Dias. É coisa científica que relanceia a tinta a muita pedra humanizada (e divinizada – e divinizada) desta Cidade. Abandono por momentos o Macau e a China de Camilo Pessanha e esvoaço, lápis na asa direita, a terra mesma onde o mesmo Camilo nasceu a 7 de Setembro de 1867 (Sé Nova). Voemos pois, com Dias, alguns séculos da Coimbra Monumental. Há uma Nossa Senhora no Museu Machado de Castro (antigo Paço Episcopal). É de aproximadamente 1330 e de Mestre Pêro. Parece cega, a Senhora, talvez o seja – mas há séculos que é vista: de quantos de nós se dirá o mesmo um dia de outro século? Parece que Recaredo, Liuva, Sisebuto e Chintila, obscuros monarcas que o Tempo esboroou (como a tudo e todos acaba fazendo) por aqui cunharam moeda. Certo é que o ocaso da II Guerra Mundial na Europa rebaptizou como de 8 de Maio a Praça que era de Sansão, onde o Mosteiro de Santa Cruz. E que a Porta Férrea da Universidade foi planeada por um António Tavares e executada, em 1634, por um Isidro Manuel. Ficou a pedra, foram-se as mãos que a mudaram. Com maiúsculas ou minúsculas, mui belas e urgentes são a Fortaleza (ou a fortaleza) e a Justiça (ou a justiça). Também são: alegorias estatuárias esculpidas pelo francês Claude Laprade nos alvores do século XVIII. Fortaleza e Justiça lá estão ainda (ao menos em pedra, ao menos por alegoria) na Via Latina do Palácio Reitoral da Universidade. A besta do D. João III assombra em calhau as cercanias da Casa da Livraria Antiga da Universidade. É obra de mestre Francisco Franco, cujo nome li pela vez prima certa vez que passeei pelo Parque de D. Carlos (I e último), nas Caldas da Rainha: há por lá obra(s) dele. Pena o mestre escultor ser do mesmo nome que o duende sanguinário que garrotou a Espanha vizinha durante trinta e seis longos anos. Adiante, porém. Fazem pena as muitas igrejas fechadas e/ou degradadas (e vários museus) de uma Cidade que se diz do Conhecimento. Nunca entrei no Colégio de S. Jerónimo. Nem no Real Colégio das Artes. Nem no Museu de História Natural. Nem no Laboratório Químico. Nem na Igreja de S. João de Almedina. Mas, filho e irmão de artistas cerâmicos, fico a saber que no século XVIII uma fábrica houve de Brioso. E que um André Gonçalves pintou barrocamente. E que a seiscentista Oficina de Bruges para cá mandou tapeçaria de sua lavra. Esplendor e resplendor fechados na sombra: que pena. Se a Nossa Senhora de Mestre Pêro é de circa 1330, de cerca de duzentos anos ulteriores é a Exaltação da Cruz de Cristóvão de Figueiredo. Já do início do século seguinte a esta pintura, o de número XVII, é o portal maneirista que, havendo pertencido ao Convento de Sant’Ana, se fachou por fora do Museu Machado de Castro. De antes, de muito antes, é a Igreja de S. Salvador (também nesta nunca entrei). Data-a Pedro Dias da segunda metade do século XII, coeva portanto da ex-librista Sé Velha. Adentro ela, Cristo, triunfal, entra para sempre, posto que em azulejo de Setecentos, em Jerusalém. João de Ruão, nome de rua hoje ainda, foi o mestre que por cá muitas deixáveis e permanecentes obras de vulto quis e pôde e fez. Exemplo de tal é o retábulo da Capela dos Velez na mesma de S. Salvador. A actual Faculdade de Farmácia foi, antes de o ser, a Casa dos Melos. Não sabia, fiquei a saber: é da primeira metade de XVI. Escaqueirada por fora (e decerto não muito sã já por dentro, por desocupada) é a Igreja do Colégio da Santíssima Trindade. Também nunca lá matraqueei as solas. Igreja e Colégio de Santo António da Pedreira? Pois. Vou (e voo) pelo livro do Prof. Dias:



“(…) fica na encosta da Universidade, virado a Sul, entre os colégios da Santíssima Trindade e de Santa Rita, no lugar donde em épocas históricas se extraía a pedra para as construções citadinas. Pertenceu à Província de Santo António da Observância, tendo sido fundado em 1602 (…)”


(Dias, op. cit., pp. 81-82)


Do século XVIII é o Colégio de Santa Rita (ou dos Grilos). Dos Grilos porquê?

“(…) dado que os religiosos que o ocuparam pertenciam à Ordem dos Eremitas Descalços de Santo Agostinho, chamado pelo povo padres grilos (…)”


(ibidem, pág. 85)


Ora toma. Fundado em 1755, ano do Grande Terramoto de Lisboa. Da Sé Velha, enfim, teve primeira pedra em 1162, abrindo-se ao culto regular vinte e dois anos depois. Tem História a dar com um pau. Ou pedra. O bispo D. Tibúrcio dorme lá dentro. O claustro, iniciado em 1218, diz-nos o Professor que é “a primeira obra gótica da região” (pág. 90). O medalhão da Porta Especiosa da velha Sé (também) é obra de mestre João de Ruão (circa 1530, também). É belíssimo e ultra-palavras o retábulo da Capela-Mor da Sé Velha: obra de dois artistas também mores – Olivier de Gand e Jean d’Ypres (primícias do século XVI). De cortar o bafo é, não menos, o retábulo da Capela do Santíssimo Sacramento da mesma Sé. “É a mais importante obra deste género de quantas existem em Portugal.” – garantia de Pedro Dias. Encomendou-a o bispo D. João Soares (salvo seja). Autor: João de Ruão, sempre. Colégio de Santo Agostinho? Também nunca o pude podografar. Plano do arquitecto italiano Filipe Terzi (1589). E então a nota pinga-nostalgia: a Torre do Anto. Anto(nio) Nobre e a Torre estão indissociavelmente fundidos, embora o Poeta a tenha habitado por escassíssimo período. Era um antigo elemento da muralha medieval de Coimbra. Desce-se e dá-se rosto à Casa de Sub-Ripas. Dois elementos a perfazem: a Casa de Cima (ou do Arco) e a Casa de Baixo (ou da Torre). Fico a saber, mais abaixo ainda, que o Hotel Astória e o Banco de Portugal são projectos de um senhor chamado Adães Bermudes.
E agora tenho os olhos (e as asas) fatigados. Ficamos hoje por esta mesma página 105. Voltaremos a voar com Pedro Dias. (E não, não me esqueci de  que o outro voo pelo ano de 1961, ao lombo d’O Ponney, também está por concluir. ’tá prometido, será cumprido. Boas-noites!)




IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 8 (d)

Foto obtida em Coimbra na tarde do dia 7 do 7 de 07

Cansado. Tenho andado muito para chegar a nenhures. Continuarei andando, que remédio. Telefonema do engenheiro GD. O meu trabalho como formador em Coimbra começa dia 18. Só três horas por semana. Tenho de me arranjar, tenho de me desembrulhar. Inquietude e incerteza.

Barbearia Triunfo; Pastelaria Convento Doce; Café Mondeguinho; onde antigamente (caramba, que tantas vezes escrevi/escrevo/escreverei “antigamente” neste caderno) era o Café Combinado, é hoje a Retrosaria Tecidos de Coimbra, ao lado da Pensão Residencial Madeira; Hotel Oslo (onde anos a fio trabalhou o senhor Ribeiro, pai do Beto e da Beta da m’infância); Rua das Padeiras; Rua da Sota (aqui, na loja-oficina Quiper, a 7 de Maio de 1976, uma alegria daquelas muiiiiito grandes: o meu Pai deu-me aquela bicicleta negra de cross com o número 8 à frente e travões de contrapedal – ele veio a pé para casa, eu de bicicleta, novos em folha os três, Pai, filho & bicicleta: generosamor, o do Velhote); o Café Bar Cervejaria Farol morreu; cozinha chinesa com nome só chinês: Restaurante Esplendoroso (se fosse nort’americano, seria Ponderosa); Residencial Paris (passei lá uma tarde, cedo na vida); Rua das Azeiteiras; parece que a Quiper, Lda. Motorizadas e Bicicletas também morreu; Travessa da Sota; Centro de (alegada, mentirosa, manhosa) Ajuda Espiritual da Igreja Universal do Reino de Deus: Cristo financeiro à brasileira; a placa Largo da Sota está afixada ao prédio onde era a casa-de-pasto O Submarino (já usei um almoço tardio e solitário meu ali, por fins dos 80/XX, para mais do que um texto, incluída uma das cerca de oitenta histórias de O Contador de Árvores); Beco do Forno; Rua do Sargento-Mor; Largo da Portagem; (vou ao Posto de Turismo, venho de lá com um mapa da Cidade); Rua dos Gatos (fiz Camilo Ardenas, da Terminação do Anjo, subir estas escadas); Travessa dos Gatos (muitas vezes por aqui subi a A Brasileira pelas traseiras); A Toca do Gato (era antigamente aqui o Pinto); Ferreira Borges (aquisição de um marcador fluorescente cor-de-laranja para marcar no mapa as artérias podografadas neste Ideário); Avenida Emídio Navarro, de costas para o Rio, de peito para o Governo Civil; e a larga avenida da tarde vai, a pouco e pouco e muito e muito, cedendo artérias às venosas vielas da noite.

22/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 8 (c)



Adro de Santa Justa; Rua da Nogueira (onde, algures nos anos 40/XX, o meu Pai dormiu uma noite em casa de um camarada fabril – contou-me ele que os ratos eram tantos, que, na cama, um pontapé dado por baixo do cobertor os fazia voar aos guinchos); paz, pombas & pão no Terreiro da Erva; Rua do Carmo (onde foi o copo-de-água dos casamentos L & J e C & MG de 1-5-71); Beco do Fanado; Beco de S. Boaventura; Rua do Moreno; Terreiro do Marmeleiro; Travessa do Marmeleiro; Rua Nova; Travessa da Rua Nova (onde o Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços); Rua de João Cabreira; Bota Abaixo (Casa-de-Pasto O Manel).
Pausa nO Tacho da Avó (antigo Morgado), à Rua dos Oleiros, para expelir uma dor de alma e uma mágoa de coração: um pouco antes da Rua João de Ruão, há pouco, vi o meu amigo de criação Chico M. Era ele o arrumador de carros. Anda à moedinha para sustentar o pó. Eu não sabia. Tinha-o visto há dias na (nossa, dele e minha) Pedrulha. Magro, amarelado. Perguntei dele. Confirmaram que anda poeirento. Mas isto: à moeda arrumando carros. Passei sem que me visse. O CM sempre foi uma beleza de rapaz. Tenho a história familiar dele aqui na garganta. Menino, perdeu o irmão e a irmã, crianças também, doentes terminais da permilagem – na nossa infância, a taxa de mortalidade infantil era das mais altas, senão a cúmula mesmo, da Europa. Lembro-me dos meninos-cadáveres nas caixas brancas, das muitas flores, do aturdimento dos adultos, do escândalo ante Deus, da fragrância mortal e mortífera e moribunda das flores. Eu teria quatro, cinco anos. Não esqueço, quem me dera. Agora, vi-o. Sobreviveu. Para isto.
Passadas umas ruas, vi, no Bota Abaixo, o Zé da Ti A. Anda ao pó, também. Ia na companhia de dois reconhecíveis e reconhecidos aspiradores de pó da nossa praça. Acontece que o Chico M e o Zé são ambos pão da minha cozedura. Longos anos tenho andado no álcool, sim. Mas isto é diferente: isto sou eu de fora a falar. Ou a escrever – no caso, dá o mesmo.

21/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 8 (b)

Almoço tomado com Mãe e Fernando. Dei de comer aos gatos que ela tem no quintal. Um muito pequenito, todo branco, teve direito a leite e tudo. Lavei a louça da refeição à Velhota, que está quase cega. Fui ao Lobito com o Fernando. Trouxe uma sacada de pão velho lá de casa. Pombas com sorte.

18/06/2010

Rosário Breve nº 159 - www.oribatejo.pt

Alguma Anatomia, mas Pouca, e Algum Circo



Vi hoje um homem de tão descomunais orelhas, que, a cinco metros, me pareciam pés. A dois metros, já só me parecia que o homem tivesse deitado as mãos à cabeça. Diz-se que, ao contrário do sexo e do tempo, as orelhas não param de crescer com a idade. Este deveria ser, portanto, muito velho mesmo.
Sentei-me perto dele. Gosto de pessoas. As pessoas são como um circo: têm habilidades, praticam truques, vivem sem rede, vão-e-vêm à mesma janela de ossos, pintam-se com as tintas da tragicomédia, acampam em lixeiras condóminas, amam os cães como a bebés hirsutos, dançam de vinho ao som de sax, bateria & acordeão, têm filhos e sofrem por causa da televisão.
Como o homem bebia aguardente, pude observar a meu bel-prazer aquelas orelhas fascinantes. Num arremedo literário que só me fica bem, direi que me lembravam o que não existe: folhas de couve-carne de veios verrumados a broca de berbequim. De dentro delas, tufavam golfadas de cabelo. O nariz seria, não foram as orelhas, grande. Era de matiz purpúreo e tacto rugoso, sugerindo sem equívoco a prática do álcool e o hábito do escarafuncho. Um pouco muito pouco abaixo, a boca era uma navalhada. Em contraste com a eminência e com o aparato das orelhas, aquela era uma boca mais própria de mulher frígida e consciente disso. Acabava de insignificá-la um queixo tão maciço e peludo como outra cabeça.
Eu gostei muito do homem. E disse-lhe isso. Eu a dizer-lhe isso, e a mulher da taberna assim para mim:
– Escusa de falar com ele, que o homem é surdo. Se quer alguma coisa dele, escreva.
Assim fiz.






16/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 8 (a)



8. MAIS PODOGRAFIA, AINDA E SEMPRE, COM VISITA A CASA DA MÃE (a)

Coimbra, segunda-feira, 7 de Junho de 2010


Sinto sempre um êxtase pequenino, uma pequenina glória, no levantar cedo. É como nascer, mas desta vez sabendo o que se passa, incluída a ideia da morte-um-dia. Ainda hoje: abri o olho do lado da cara sem infecção e algo ou alguém se pôs a sorrir com o lado sem infecção da minha boca. Deixei-me ali estar um bocado a armar em avatar. Não foi muito tempo. O Sol era quase. Ainda não era, mas era quase. Bebi em cuecas um copo de água na cozinha comum da casa de quartos. Sentei-me depois no trono de louça para o que desse e viesse – e deu e veio e foi. Então, a terceira das mínimas delícias de renascer: o banho. Sob o chuveiro, é-me sempre gratificante aferir os limites do corpo com esse instrumento de precisão mor chamado sabão. Olho-me para baixo e sei que já fui pequeno e já fui médio e que agora não sou, nunca serei grande coisa. É bom sabê-lo sem ilusão mas com sabão. Enxuto, um tudo-nada perfumado, regresso à cozinha, regresso à cozinha para leite & bolachas & marmelada. O silêncio da casa recebe finalmente o primeiro dardo solar, que vem, diagonal, esmigalhar uma poalha de diamantes na divisão onde acabo de comer (é preciso limpar o pó). O comedor de bolachas não pensa de moto-próprio nem por-si: as coisas, a esta hora temporã, são quem no pensa. Fragmentos, cacos, lances, miudezas de passado & futuro (presente, nunca) entrelaçam-se e interagem na cabeça do recém-renascido. Também isto é bom. No quarto, os apetrechos e os mantimentos para a viagem do dia estão já agasalhados no bornal. É o momento de partir, de novo senhor, de nada para ninguém ou coisa alguma embora, de si.

Homens das bombas de gasolina: penúltimos degraus da escada do consumo multimilionário. Todos eles pobres, fodidos todos eles e mal pagos todos. Os doutores (só moram doutores em Coimbra) abastecem as viaturas sem sair de dentro delas. Triângulo da predação: a base é o homem das bombas, o vértice parece que é Deus – ou o Papa por ele – ou o doutor de Coimbra.

Nunca habitarei, nem como criado de servir ou valete de quarto sequer, a Vila Mariani, ao Calhabé. Moro num quarto, à Solum.


Não está
ainda não
não ainda
perdida a vida
que é linda
até.


Aves de Coimbra
que a sufrágio ides
em um mundo de gatos
de cachorros pedintes
e de ratos
voto por vós
de Coimbra aves.


De José Rodrigues Miguéis, isto:


Não sei se já repararam que as pessoas que caminham no mesmo sentido quase nunca se encontram.

Decisão de penúltima hora: ir almoçar a casa da Mãe. Se, acordando, renasço, vou revisitar quem me nasceu. Nas entrelinhas de Miguéis (faltam-me três páginas para encerrar a leitura), preparo já a expedição ao berço: autocarro nº 5, hora aproximada de regresso. Leitura de Miguéis concluída, segue-se um colega alcoólico de, digamos, primeira-água: F. Scott Fitzgerald (Três Horas entre Dois Aviões). Três (para já) leituras por concluir: Malaparte, Woolf e Pessanha – a seu tempo. Para já, em paragem-bus junto ao Estádio Cidade de Coimbra, nascido em 2004 das cinzas do velhinho Municipal, onde vi jogar o senhor Eusébio contra a Académica (derrota encarnada por 2-0) e contra o meu União (derrota unionista por 0-4) e o senhor Damas (vitória leonina sobre os “sintéticos” por 3-4). Há muito, muito tempo – noutro século de outro milénio. Que se lixe, vou a caminho da minha Mãe.

Dia de sol nublado e de favónio fresco, agradável na roupa. Passa uma morena forte, madura já, boa bacia atada a cinturão de presilhas, decote como um clarão, quarentas à vontade.

Comprei uma senha de três viagens, desta vez não me boto a pé ao caminho para a Pedrulha. Passa um maluco, depois outro. É uma vocação iniludível da minha Cidade, a malucagem inofensiva coleando pelas ruas seus lunares lados ocultos: chamo-lhes “pinqueflóides”. Já morreram os clássicos da minha mocidade: o Maló, o Pedro do casaco encarnado à Martini, o Tatonas, o Vasco, o Taxeira. Estes, de que não sei ’inda o nome, estão e andam vivos.

Ali vai um rapaz de óculos escuros à moda, desses que tapam meio focinho. Barriga-michelin às camadas de unto gelatinoso, chinelos brasileiros, pochette à Cunhal, um ricto de fastio saciado na beiçola húmida e roxa.

Tenho de aprender alguma botânica, carago. Quero chamar árvores, flores e demais vegetação pelo nome – e pouquíssimo mais sei que oliveira, rosa e musgo.

Autocarro nº 5, Estádio-Pedrulha. Antigamente, o 5 era S. José. Da Pedrulha até aqui, era preciso apanhar o 2 primeiro. Ora ainda bem. De qualquer modo, esta e todas as cidades são para conhecer à pata. Daí que este caderno vá subintitulado Podografias de Retorno. É termo que cunhei em Viseu, ao tempo que por lá morei e (muito) andei: podografia não é (digo eu) escrever com os pés nem exactamente de pé, mas escrever o que se anda a (escre)(vi)ver. Nomes de ruas (mas e o das árvores etc.?), nomes para coisas, gente incluída – em pedestre andamento, mesmo parado. É uma maluquice (mais uma) inofensiva. Sim, também pertenço a eles, também eu sou um pinqueflóide. Pois se até o falecido Tatonas era Daniel…
Antecipo na pança o arroz de frango que a minha Velhota me garantiu por telefone. Se o meu irmão Fernando por lá andar, tomaremos café no Lobito juntos, pago eu. Pombal, só quarta-feira (dentista e reunião de formadores). Até lá, muita caminha coimbrã e muita leitura cosmopolita.

Ontem à noite, episódio autoclínico. Regressando do Nosso ao quarto, desespero por causa do abcesso na raiz do canino. Não estive com mais estas nem aquelas: ao espelho da casa-de-banho, alcooletilizei gengiva e folha de canivete. Furei o balão. Esguichou pus (fétido) e sangue e outras aguadilhas. Espremi a batata túmida. Olhos vidrados de algia, mas coragem. Alívio quase imediato. Desinfectei a comua (popular antigo para “boca”) outra vez, deitei-me à espera. Passado um pouco (não muito), lá pude fumar o meu cigarro e ler o meu Chesterton de antecâmara sonífera. Ainda ando inchado de ventas, mas sem qualquer dor.

Obras de vulto na Escola Brotero; idem no (meu) D. Maria; Rua General Humberto Delgado, o Assassinado (parece que o cabrão do Rosa Casaco ainda é vivo, o impune filho duma puta); sol, viste-lo, de momento; Combatentes acima (Restaurante Safari, onde há coisa de trinta anos papei um bife à conta do CAGS, por lhe ter feito o exame liceal de Inglês e aonde vim dar ao dono o irmão preto do meu saudoso cão amarelo, o Canino); Leitaria do Raul; Arcos do Jardim; Alexandre Herculano (Cooperativa Ré Maior, lições de piano com a professora Alice Amélia, 1976) até à Praça da República (Café Tropical, São Pinto e Carlos Athayde); Sá da Bandeira (Pastelaria Marques, óptimos folhados e franguinhos assados antigamente, agora não sei, lembro-me de haver na parede um aviso que proibia estudar entre as tantas e as tantas horas); PSP (antigo celeiro do Mosteiro de Santa Cruz, ensina o Professor Pedro Dias de Coimbra – Arte e História, Paisagem Editora, Porto, 1983), Jardim da Manga e escadas do fontanário para Montarroio (Fonte da Madalena, que foi pertença da antiga Quinta de Santa Cruz, op. cit.); Rua da Sofia (becos para o Mijacão e para a Democrática); Palácio da Justiça (antigo Colégio de S. Tomás; painéis maravilhosos de mestre Jorge Colaço – de 1933, os painéis, tenho a certeza de cor – e casamentos de Lucília com José e de Carlos com Maria da Graça no dia 1 de Maio de 1971); Arnado (sobe nesta paragem o Júlio de Trouxemil que trabalha(va) na ANTRAM e era director do meu Centro Atlético das Neves, onde futebolei a partir de 1982, tempo, Tempo, time, Time de pinqueflóide; Fernão de Magalhães (Rodoviária de dia e putas à noite); (Quantos milhões de vezes fiz estes sítios? – milhões; e quantas mocidades? – uma.); além, Monte Formoso; Choupal, além; Café Danúbio (o estabelecimento tem um anúncio naquele Ponney de 1961 que ontem referi – voltarei a ambos, ao magazine da boa-disposição como ao Danúbio; Coimbra-B, vulgo Estação Velha (acho que foi inaugurada em 1864); Casal Ferrão do meu amigo Quim Jorge; Loreto, Brinca e Relvinha (mas agora o Lusa Nova já não é Lusa Nova, é uma coisa, uma pastelaria, não sei quê Euro Avenida – da próxima vez, vou ao Lancer e pronto); antigo Bairro da Lata, que o PCP transformou em bairro de decentes tijolo & telha & cimento, no imediato pós-25; rotunda da BP (isto dantes era tudo olival) e Complexo das Piscinas Rui Abreu (onde era o meu ciclo, Escola Rainha Santa Isabel; também me lembro do suicídio do nadador Rui Abreu nos Estados Unidos, asfixiado num saco de plástico, o Álvaro de Campos do Se te queres matar, por que não te queres matar? aberto ao lado, porra); Churrasqueira da Pedrulha (em oposição ao sítio do prédio que explodiu/implodiu no incêndio do armazém de botijas de gás, vai para mais de trinta anos); Rua 4 de Julho e Largo de S. Simão; cheguei.

14/06/2010

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 7




7. UM DOMINGO MENOS MAU



Coimbra, domingo, 6 de Junho de 2010



Saído do Nosso já depois da uma da manhã, levei no bornal o Mário Ventura (Quarto Crescente) todo lido. Em casa, isto é, no quarto, estirei-me com o G.K. Chesterton de A Inocência do Padre Brown. O sono veio, a noite alastrou pelas abcissas da mente, acordei cedo e retemperado. O sacana do abcesso, porém, resiste ainda às investidas da amoxicilina com ácido clavulânico e da nimesulida, raios mo partam. De qualquer maneira, fim da manhã lendo o excelente José Rodrigues Miguéis que este paíseco não mereceu nem merece. O volume dele chama-se Comércio com o Inimigo e Outros Contos, que a Inova publicou em Julho de 1973.
Hoje à tarde, finalmente, hei-de cirandar pelo cemitério de Santo António dos Olivais em demanda de mestre Vitorino Nemésio. Para já, já já, no entanto, a finura e a fineza de Miguéis.


A clara vocação de Junho para a claridade tem sido, ontem e hoje, algo contrariada por uma espécie de gaze acartonada que, difusa e difusora, resulta numa luminescência algo severa e alvacenta seu quanto, seu tanto evanescente.

Nisto, a tarde.
Rua Almirante Gago Coutinho (a 7 do Julho que aí vem, faz oitenta e oito anos a célebre viagem aérea que ele fez, com Sacadura Cabral, entre Portugal e o Brasil); subir o Cidral, tomar a meio uma chávena de café, fumar um cigarro à sombra, tomar os comprimidos contra o abcesso (dias e horas difíceis, com a boca assim); Rua Teixeira de Carvalho (arqueólogo e crítico de arte – sécs. XIX e XX); uma paz solar de aldeia entorpece a Coimbra dominical; Rua Bernardim Ribeiro (poeta que foi dos séculos XV e XVI; Rua João Pinto Ribeiro (jurisconsulto e conjurado de 1640); certos prédios apalaçados (e abandonados) sobem na cor da tarde à maneira de Hopper; chego finalmente ao cabo da Avenida Dias da Silva (professor que foi da Universidade local – 1856-1910) e estou nos Olivais.
A Rua da Mãozinha é muito perto do antigo terreiro onde se faz(ia) a Feira do Espírito Santo. E há tendas, hoje. Ali está uma de louça de barro vermelho. Além do estendal de barracas da feira, a Igreja e o Cemitério de Santo António dos Olivais. O Campo-Santo foi “Offª do Bemfeitor José Cannas Júnior – 1898”. Mas azar: “Horário Dias Úteis 8 às 17 Hªs. Domingos e Feriados 8 às 13 Hªs.” Vim e não entro, não hoje, mas voltarei, mestre Nemésio.
Rua José Alberto dos Reis (um professor universitário mais – 1875-1955); Rua Flávio Rodrigues (guitarrista – 1902-1950); Escola Eugénio de Castro (onde em 1974, eu, enfim; e onde as flores no portão para o Jorge, em 1986, enfim); e chegada ao quarto-casa, para agasalho cenáculo, na Gago Coutinho, à Solum.


Tem sido um bom domingo, na companhia de Rodrigues Miguéis à luz de Junho (que a tarde abriu mais). Preparo-me agora, chá de limão à mão, para retroviajar quase quarenta e nove anos. Ponto de partida & chegada, O Nosso Café, ao Calhabé. A Máquina do Tempo que me veiculará: o nº 536 (ano XXXII), de Outubro de 1961, da publicação humorística (ou bem-humorada) e coimbrã O Ponney. Fundado por um (claro, pois que em Coimbra…) dr. chamado Castelão de Almeida, O Ponney coloria como podia esses anos cinzentos. O mesmo ano de 1961 do meu exemplar foi o da alba da guerra colonial, que Angola despertou. Mas o chá arrefece. Voltarei em 1961, pois.


Que o velho Ponney, feliz,
Rei do riso e da chalaça,
Conta sempre a mesma idade,
Por muitos anos que faça.

(da capa)


O futuro começou em 1961 no Largo das Ameias, 11-14. O futuro era o CONSUL 315, com 2 e 4 portas. O berço do futuro foi a AUTO GARAGEM DE COIMBRA, LDA.
(da contracapa)


Mas o futuro do futuro remete para 1929, ano em que alguns estudantes vinófilos atabernados na Cidade Alta decidiram combater a decadência da Academia, cujos fautores eram, para eles, os lingrinhas que bebiam chá e debicavam pastéis e biscoitos na Central, lá para a Baixa: os Ponneys da Central. Mais informa O Ponney de 1961 que os Ponneys da Central equivaliam, em figurino e pose, aos pipis da tabela de primícias da década de 60/XX, até pela brilhantina que lhes lustrava e escorria o risco ao lado. O Papá e o Padrinho do primeiro Ponney foram Castelão de Almeida (de Direito, pseudónimo editorial Tricástlis) e Henrique Mota (alcunhado Pantaleão, de Medicina).
Quando Castelão (finalmente) se formou, incumbiu-se da direcção Fausto “do Janeiro” Marques (pág. 4). Em 1961, O Ponney era dirigido por Octávio Chau Afonso, sendo editor o tal Fausto e chefe da redacção A. Durão Pereira. Redacção e administração eram na Praça da Índia Portuguesa, 4. Compunha-o e imprimia-o a Tipografia Rainha Santa, sita na Avenida Sá da Bandeira, 12-16.
Voltarei/emos aO Ponney nº 536. Por ora, fecho-me nos contos de Miguéis até que a vista me doa.

IDEÁRIO DE COIMBRA - podografias de retorno – 6



6. NOVA CORRIDA, NOVA VIAGEM, UMA NOITE POR DIA



Coimbra, sábado, 5 de Junho de 2010

Dia novo, nova corrida, nova viagem. Plano: a bordo já do comboio em Coimbra-A (o8h45m), rumo à Figueira da Foz, chegar, telefonar ao João P., seguir com ele para o Louriçal, almoçar pinhalmente na casita da Lagoa do senhor Marques nos Matos da Vila, café no Sol Dourado do senhor Henrique “O Velho” dos Santos, esperar a Jessica para a explicação das 16h30m e pelo Kevin da das 18h30m. Depois, ou regresso pela Figueira ou por Pombal. Não é um mau plano.
Entre o despertar no quarto (07h15m) e a bilheteira da Estação Nova, caminhada fresca pela rarefeita Cidade. Uma boa chávena de café numa pastelaria tão vazia ainda, que nem moscas tinha. É uma coisa boa, para mim como para as aves do Parque (melros, patos, pardais, pombos), que os transeuntes abandonem pela calçada restos de bolos e de pão. Colho tais sobras, esmigalho-as no relvado do Jardim, fico a ver o ajuntamento voraz dos seres alados. É um pouco como ser Deus.
À janela móvel, visão do Choupal. Breve, espero, revisitarei esta catedral da Natureza. Trarei o meu caderno no bornal, algum livro e alguma comida & água e alguns olhos.

Viagem boa: Mário Ventura e Camilo Pessanha vão comigo à Figueira. E é pela data de uma carta de Camilo P. a Henrique Trindade Coelho (filho de José Francisco de T.C., o autor célebre e celebrado de In Illo Tempore e Os Meus Amores) que descubro qual o dia da semana em que nasceu o meu Pai – uma terça-feira. Nascido a 10 de Abril de 1917, só pode ter sido a uma terça porque o Poeta epistológrafo data a carta a Henrique Trindade Coelho assim: “Macau – Abril, 8 (domingo de Páscoa), 917”. Boa descoberta.
Entretanto, a composição faz entrada na foz do Mondego. E o meu velho deslumbramento não falha: que encanto, esta veia, este milagre de um rio fazendo-se mar, água doce da Estrela agora sal do Atlântico! E esta luz tão invencível, que apetece, nas árvores povoadas de peixes, surpreender aves que nadam e pessoas que barquejam. Já por aqui morei, espero voltar a fazê-lo. Tenho de fazer por merecê-lo, apenas isso.
Vou à Delmar, compro duas (ricas) empadas, que como pela rua a caminho do Café Estuário, velho estabelecimento que dá rosto ao porto comercial, onde pontificam as gruas da estiva. Pergunto ao dono da casa pela senhora que, há tantos anos infantes, se sentava aqui à porta com banca de caranguejo da pedra.
Morreu.
E pronto.
Enquanto o João não vem, breve conversa telefónica com a AR. Tempo algo encardido, de luz garrotada pelas nuvens de ardósia. Mercedes pelas avenidas. Ciclistas modernaços em filosofia de vida-BTT. Às Festas da Cidade Figueira da Foz/2010 vêm, a 18 de Junho, o José Cid, e, a 19, o insuportável coimbrinha André Sardet: pobre S. João. Faz este ano duas décadas em ponto que me convidaram para padrinho da Marcha da Fontela. Ganhámos, claro: a Fontela ganhou sempre que participou nas marchas sanjoaninas. Duas décadas: sacana do Tempo. Pausa para mais Pessanha e mais Ventura, agora.

Agora, já lá vai o almoço-merenda na Lagoa dos Marques, aos Matos da Vila, Louriçal. Tarde boa. Até nadei por aposta: ganhei vinte euros. Ajudei a resgatar dois pinheiros muito jeitosos, para lenha, que tinham caído à água. Carne de porco, salada de pepino, cebola e tomate, batatas, broa, vinho, cerveja, laranjada, café, sueca de cartas, convívio, relaxe: um autêntico health-club.
Regresso a Coimbra pela Figueira da Foz, comboio às 19h45m. Há sábados (e vidas) piores, suponho. Uma fadiga doce. Não sei se não vou adormecer no comboio. Projecto pós-ferrovia: chá de limão no Nosso, prosseguir leituras, venturas e pessanhas. Para já, (des)fazer tempo no Estuário, de novo no Café Estuário a cujo portal antigamente a senhora dos caranguejos. Apurei pelo João P. que se tratava da “mulher do Azevedo”. O João P. foi-se embora à vida dele na casa dele, entrei no Estuário para efeito de refresco e contemporização, disse ao dono o que o João me tinha dito. E ele:
Pois era. Ainda agora aqui esteve a filha.
Pois é, digo eu: um dia destes, ainda agora aqui estivemos.

Terno retorno. Entardenoitece a jornada quinta junina. Figueira da Foz; Fontela-A; Fontela; Lares e ss. Breve não veremos a terminação do rio, breve adentraremos a vastidão dos campos de arroz e de milho, em um avo retomaremos do rio a condição urbana e meã.
Afinal, não adormeço em curso. Adormeceram sim dois rapazes à minha frente. O do lado esquerdo parece um anjo gay dado a soporíferos: blusa preta de cavas, calçãozinho de algodão cinza muito fino, chinelinho-chinesinho de borracha branco de enfiar-enfiar o dedo. O da direita é de beiçoleta grossa, queixo enfiado, testa ampla, tez amorenada de potro, sapato de vela, calça de terileno, lacoste preta como o cabelo, bem cortado aliás. Dormem bem, os meninos. Não se conhecem um ao outro cá fora, mas pode ser que se encontrem algures no son(h)o. Nisto, visão dos grandes milhos, do rasteiro arroz, dos casais planos que calcificam a humanidade dos campos, de Verride, da natureza pulmonar e ramalhante das grandes árvores bêbedas de tão fartas águas, do Marujal. Como viajo em assento lateral, propicia-se-me a óptica dupla: sobrepostos, os planos da visão directa em frente e o do reflexo da vidraça a que dou costas: natureza de natureza, plano de plano, olhar de olhar, ilusão de ilusão.
Agora: um derradeiro sol vence o cartão do céu e brilha branco. É pela chegada e passagem a/por Montemor-o-Velho. Também o chegar encanta, Bencanta. Transbordo em Coimbra-B. Depois, a Noite, o chá de limão.

Antes ’inda da noite, uma volta por outras instâncias e circunstâncias de Coimbra: Largo das Ameias (Hotel Mondego); Rua do Poço (Pensão Flor de Coimbra); Terreiro do Mendonça; Travessa das Canivetas (Casa das Bonecas); Beco de Santa Maria; Rua das Azeiteiras (Restaurante-Adega Funchal e Barbearia Elegante); Rua Corpo de Deus (Petúnia Florista); Avenida Sá da Bandeira (onde espero que o Monumento a Luís de Camões – datado, salvo erro de memória meu, de 1880 – finalmente repouse sem mais trapalhadas de mete-e-tira-e-põe-e-muda).
Precisamente ante o leão que subjaz à lauricoroa camoniana: aqui sim, a esta hora (20h46m) de um dia de Junho, dá para assimilar em pleno a luminosa e melancólica doçura da minha Cidade de ocaso, que não de acaso. Para bandas do mar, um derramado fulvo é ainda ouro e vai ser coração de romã. Para cima, além da Manutenção Militar, as casas sobem a quanto céu podem – e não tão pouco ele é quanto isso. À esquina, a tão antiga Escola Central Primária de Santa Cruz faz ’inda de menina: e fez cem anos o mês passado, também. Subindo, a maravilha nunca de mais louvada do ordenado arvoredo. Além, o quê? Mais Coimbra.
Júlio Henriques é nome de botânico existido entre 1838 e 1928. Também é nome da alameda que vai dos Arcos do Jardim até lá baixo à dos Combatentes. Boa ideia, já que ao lado é o mui formoso Jardim (também) Botânico. Esquino depois a Rua Camilo Castelo Branco, o atormentado génio da Língua Portuguesa que respirou entre 1825 e 1890. E então, uns metros à frente, cedo à nostalgia.
Entro na Antiga Leitaria do Castelo (ou Leitaria do Raul). É outra vez 1982, assim de repente. Vou com a minha tão querida Amiga São Pinto. Vamos à especialidade da Casa – a tosta de galinha. Saiu há pouco o Por este Rio Acima do Fausto. O García Márquez ganha o Nobel. Faustávamos e cemanosdassolidãozávamos. Algumas vezes nos ríamos de nós mesmos: porque, às terças-feiras, nos esquecíamos de que era terça – e dávamos com os narizes, cada um com seu nariz, no aviso de descanso semanal do pessoal do estabelecimento. A única maneira que tenho de revivê-la (e de fazê-la reviver) é esta. De nada me/nos serve, eu sei. Hoje é sábado, São, está aberta a Leitaria.
Pouso e repouso, pois no Raul. Empalidece até à lividez o cenário côncavo do firmamento. O Jardim Botânico vence uma espessura de tinta-da-China. Do meu lado direito, dando a face à Alameda Júlio Henriques, há um palacete cor-de-rosa (mas não é pela cor) que desde para aí os meus dezasseis fundo com as linhas iniciais de Os Maias, as que nos levam pela mão ao Ramalhete. Arrefece, mas não de mais. Junho é uma bênção, uma bênção siamesa da de Setembro. Um táxi na Avenida Dr. Marnoco, onde o Raul. Sai o freguês, um rapazola de calções e cabelo amarfanhado em totó no occipício (ou púcio, sei lá, quero lá saber). Antigamente, as mulheres que vendiam caldo verde na praça é que usavam totó. Agora, os totós também usam totó. Adiante. (A São Pinto – Cinha, para a família – era de uma beleza interior que só encontrava rival na quase insuportável perfeição do rosto: os olhos de uma bondade boreal, a boca valendo por um morango doutor em simetria, as maçãs das faces superlativando a condição camoesa, o cabelo perfeito. Também às terças.)

São 21h39m. Nem eufórico, nem desesperado. Apenas vivo. Toda a gente vive apenas – e a penas. É normal. Se calhar, é até saudável. Não sei. Não sei tudo. Não gostaria nada, aliás e sequer, da possibilidade de saber tudo. Tenho um caderno. Um caderno e uma noite por dia. (Estou mesmo a ver que me vai sair versalhada não tarda nada:)


IDEÁRIO DE COIMBRA

A manta é curta mas deita-te um pouco,
a vida é breve, é só o que é.
’ind’ ontem passei por um tipo que é louco
– e passei por outro que o não sei se é.

Dá-me a tua graça, o teu pundonor,
o teu epicédio, teu citrino olhar,
a tua chalaça, teu tira-sem-pôr
e a tua desgraça, undécima dor.


Tenho, Coimbra, sido ausente até da comum lucidez, feito coisas impensadas e impensáveis. Tenho amado mal, embora muito. Escrito, tenho escrito. Mas para quê, não é? Olha, escrevo para ti – que nem ler sabes, coitada.

Canzoada Assaltante