1)
Era uma vez um homem que vivia numa casa amarela e branca. Tinha as coisas dele dentro de casa e também no barracão de madeira do quintal. O resto do quintal subia no ar: uma laranjeira, uma cerejeira, uma figueira e couves de pé alto. Ele tinha um cão, que só prendia de noite. Manhã cedo, soltava o cão.
2)
Iam os dois, cão e homem, à vida deles. O trabalho do homem era de cantoneiro. Desobstruía valetas, fazia e tapava furos na terra, reparava vedações, fazia recados ao Presidente. Às vezes, fazia mesmo de coveiro. A vida ia e vinha e ia todos os dias.
3)
Às cinco da tarde, de verão como de inverno, o tempo voltava a ser dele. O cão acompanhava-o todo o dia. Ficava à porta da Junta quando o homem ia lá dentro, retomava a sombra do homem quando ele saía. Às cinco e vinte da tarde, o dono da taberna não se importava de ver o cão entrar loja adentro com o homem.
4)
O homem merendava carapaus fritos. As espinhas, não as dava ele ao cão. As cabeças, sim. Por baixo da mesa, o cão ia comendo as cabeças uma a uma. Ouvia o dono falar com o taberneiro, mas as palavras não o prendiam. A espessuras delas, sim. Era como se os homens cantassem. O cão temia o canto da irritação (o futebol) e gostava do ramerrame da paz (a agricultura).
5)
O taberneiro dava ossos ao homem. O homem pagava a merenda, pegava no saco e saía. O cão já estava à porta. No inverno, já era noite por essa hora. O homem prendia o cão e dava-lhe os ossos. No verão, não lhe dava logo os ossos. Deixava-o solto até à lua. Só então o prendia e lhe dava os ossos.
6)
Um veterinário pago pela Junta vinha todos os meses. O homem aproveitava para lhe mostrar o cão. O doutor ou dizia “Tudo bem” ou lhe dava qualquer coisa tirada da maleta. E as vidas do homem e do cão poderiam trocadas uma pela outra, de tal modo seguiam juntas.
7)
Veio então o dia em que o homem estava a ajudar à manobra de um catrapilo em obras na berma da estrada. O cão pôs-se a seguir, por mera curiosidade, uma lagartixa ferida até meio da via. O carro não conseguiu matá-lo logo. O cão foi atirado uns seis metros. Tinha as patas da frente como galhos depois de um vento mais duro.
8)
A cabeça do animal tinha sido tocada do lado esquerdo, o olho desse lado já estava vazio. Um fio de sangue indicava o lugar da boca. O cão esperou que o homem chegasse junto dele, como sempre faziam ambos: o cão, esperar; o homem, chegar.
9)
Mas primeiro o homem falou com o dono do carro. O condutor teimava que o pára-choques e a pintura iriam custar não sabia o cão quanto. O cão, dessa última vez, deu atenção às palavras do dono. E o dono cantou assim:
10)
– Ó homem, vá-se embora já, que eu rebento-lhe o resto do carro e a cara toda!
O do carro foi-se embora. O cão gostou muito do que ouviu. O homem baixou-se para o cão e disse-lhe assim:
– Meu cãozito, meu cãozito.
Mas o cão já não ligava às palavras. Tudo era, outra vez, apenas música.
Era uma vez um homem que vivia numa casa amarela e branca. Tinha as coisas dele dentro de casa e também no barracão de madeira do quintal. O resto do quintal subia no ar: uma laranjeira, uma cerejeira, uma figueira e couves de pé alto. Ele tinha um cão, que só prendia de noite. Manhã cedo, soltava o cão.
2)
Iam os dois, cão e homem, à vida deles. O trabalho do homem era de cantoneiro. Desobstruía valetas, fazia e tapava furos na terra, reparava vedações, fazia recados ao Presidente. Às vezes, fazia mesmo de coveiro. A vida ia e vinha e ia todos os dias.
3)
Às cinco da tarde, de verão como de inverno, o tempo voltava a ser dele. O cão acompanhava-o todo o dia. Ficava à porta da Junta quando o homem ia lá dentro, retomava a sombra do homem quando ele saía. Às cinco e vinte da tarde, o dono da taberna não se importava de ver o cão entrar loja adentro com o homem.
4)
O homem merendava carapaus fritos. As espinhas, não as dava ele ao cão. As cabeças, sim. Por baixo da mesa, o cão ia comendo as cabeças uma a uma. Ouvia o dono falar com o taberneiro, mas as palavras não o prendiam. A espessuras delas, sim. Era como se os homens cantassem. O cão temia o canto da irritação (o futebol) e gostava do ramerrame da paz (a agricultura).
5)
O taberneiro dava ossos ao homem. O homem pagava a merenda, pegava no saco e saía. O cão já estava à porta. No inverno, já era noite por essa hora. O homem prendia o cão e dava-lhe os ossos. No verão, não lhe dava logo os ossos. Deixava-o solto até à lua. Só então o prendia e lhe dava os ossos.
6)
Um veterinário pago pela Junta vinha todos os meses. O homem aproveitava para lhe mostrar o cão. O doutor ou dizia “Tudo bem” ou lhe dava qualquer coisa tirada da maleta. E as vidas do homem e do cão poderiam trocadas uma pela outra, de tal modo seguiam juntas.
7)
Veio então o dia em que o homem estava a ajudar à manobra de um catrapilo em obras na berma da estrada. O cão pôs-se a seguir, por mera curiosidade, uma lagartixa ferida até meio da via. O carro não conseguiu matá-lo logo. O cão foi atirado uns seis metros. Tinha as patas da frente como galhos depois de um vento mais duro.
8)
A cabeça do animal tinha sido tocada do lado esquerdo, o olho desse lado já estava vazio. Um fio de sangue indicava o lugar da boca. O cão esperou que o homem chegasse junto dele, como sempre faziam ambos: o cão, esperar; o homem, chegar.
9)
Mas primeiro o homem falou com o dono do carro. O condutor teimava que o pára-choques e a pintura iriam custar não sabia o cão quanto. O cão, dessa última vez, deu atenção às palavras do dono. E o dono cantou assim:
10)
– Ó homem, vá-se embora já, que eu rebento-lhe o resto do carro e a cara toda!
O do carro foi-se embora. O cão gostou muito do que ouviu. O homem baixou-se para o cão e disse-lhe assim:
– Meu cãozito, meu cãozito.
Mas o cão já não ligava às palavras. Tudo era, outra vez, apenas música.
Caramulo, 1 de Junho de 2006
Sem comentários:
Enviar um comentário