12/09/2006

Decisão do Registo de Santos e Anjos

Nota: este texto, cuja organização me custou uma boa parte da tarde de 29 de Agosto de 2006, é um compósito mais ou menos cirúrgico de fragmentos roubados a cinco capítulos de uma história abandonada. Esses capítulos
(I - Um Ajudante de Farmácia; II - Decisão do Registo de Santos e Anjos; III - São Orlando Gil Deseja uma Mulher e Fala; IV - Graça Teresa Lima – Clarissa do Agravo Mais Dois Santos e uma Santa Antecipada; V – Cerveja Preta, Olho Verde)
remontam, em ideia e esboço, a Fevereiro/Março de 2006. Já me tem acontecido mais vezes. Isto e coisas piores.

O inverno aumenta as noites e o mar.
Os anos correram e correm.
Há a luz.
Há o vento dando nos cedros.
Do lado da água chegam os gritos das gaivotas fluviais.
Exerço aos domingos a minha condição plátana.
Aos domingos, não sou.
Aos domingos, deixo-me encontrar pela vila despovoada.
O tempo do corpo pode ser já pouco, mas é o meu maior dote, também.
O tempo dilui os fluidos, retempera-os, torna-os substanciais: estabelecimentos comerciais, lances de rio, polícias, pombas narrativas, paços do concelho.
Um pedinte pequeno à porta do talho: parece um anjo de gesso de segurar a lanterna tumular.
Dentro do talho, animais do extermínio vermelham a potência alimentar da vila.
Defendo-me.
Se me sinto sufocar no quarto, onde a escassez da mobília e a estreiteza dos sonhos não raro me minotauram, saio tão cedo, que as estrelas frias dão gritinhos e correrias no céu congelado.
(Hás-de chegar indefesa à autoridade do tesouro que acumulo para ti. Assim chegarás – e nada alheia ao rumor erótico, escumoso, desumano do mar. Encontrarás um santo de asas partidas pelo manso alcoolismo pós-laboral.)
Comércio, arquitectura, economia, trânsito, hipismo, erotismo, culinária e poesia portuguesa – o mundo existe.
A santificação do meu trabalho (registar santos e anjos urbanos, suburbanos e aldeãos) e o cumprimento do meu dever quotidiano (atender) já decorrem do simples chover, do dar simples do vento nos cedros.
Desnecessito, pois, de Josemarí Escrivá.
Não tenho favores a pedir.
Há muitos anos, numa sexta-feira de glória, parti em demanda de meus mesmos sacros cálices, os quais fui servido encontrar.
A balcões muitos os encontrei.
Sucessivas terras, mulheres e homens fui despregando de minha túnica.
Não desprezo, renego ou amaldiçoo haver demandado.
Deveria havê-lo feito e hei-o feito.
Assim fiz.
Creio na espera e no registo, apenas.
E em santos e anjos, o que dá o mesmo.
Um vago receio de pederastas e faquistas, noctambulando pelo parque de uma cidade hoje, felizmente, indeterminável.
No regresso, a casa cheirando a cozido e a mijo de gato.
A gaveta das facas forrada a papel de revista.
Sob as facas, a cara de Lady Diana, essoutra santa antecipada.
Lady Di póstuma nos quiosques: a sorridência esmaltada, o cadáver louro, a aura sistina que tanto entontece, ainda e sempre, costureiras, adolescentes, caixeiras e advogadas sem banca nem príncipe.
Não importa.
Tão pouca coisa importa, depois de quase tudo, vividos os anos crematórios.
Se revisito alguma das cidades, percebo a espera.
As cidades esperam.
Apodreceram um pouco nas juntas, é certo.
Creches deram doutores.
Roseirais tropicalizaram-se.
Vieram hordas estrangeiras, aprenderam-nos a língua e submeteram-se à sopa e aos horários municipais.
Há muitos anos, em glória, era sexta-feira.
Apeei-me do comboio entre adolescentes, material escolar, aposentados trôpegos como pinguins, gajas sozinhas com revistas, serralheiros fumando sem-filtros, últimas pombas.
Vista das escadas da estação, a cidade parecia-se com a cidade da memória futura: este parágrafo.
Ruas, edifícios e pessoas aderiam, como decalcomanias transparentes, ao que deles e delas eu haveria de recordar.
Senti-me bem.
Entrei num café colonial e bebi um doce ao balcão.
Entretive-me a apreciar a comida colorida do mostrador.
Pedi outro doce e acabei por sentar-me a uma mesa.
Havia uma revista abandonada na cadeira.
Tomei-a e dei de caras com Lady Di.
À mesa da janela, duas senhoras que eram putas comiam pastéis de bacalhau.
Empurravam o bolo alimentar com cerveja preta.
Uma estava toda vestida, calçada e brincada de lilás.
Tinha um dente azul, em cuja superfície rechinava de saliva um fiapo de bacalhau.
A outra envergava verde e azul.
Os brincos desta eram de plástico brilhante.
Não me notaram, pelo que deram entrada no meu registo em plena inocência, uma vez na vida. Depois, levantaram-se e saíram – e eu receei um pouco a solidão.
Fiz-me forte e despejei para a garganta o resto do doce.
Pedi um pastel de bacalhau.
Estava frio, mas a salsa trincou o sabor num arremedo de primavera.
Li o resto da sinopse biográfica de Diana Spencer, tomei nota mental da melancolia interminável que deve ter sido a sua vida ao lado do príncipe Carlos e verifiquei que a noite, lá fora, começara já a embrulhar em celofane toda a esperança.
A mesa das putas, que tinham acudido ao celofane, era agora ocupada por uma senhora vasta.
Ela era um porta-aviões ginecológico torpedeado sem clemência pelos anos.
Calculei-lhe oitenta anos.
Maquilhada de oito boiões diferentes, parecia sonolenta.
O rímel pesava-lhe nas pestanas como lixo num toldo.
A boca era-lhe um trapo escarlate.
As mãos de pergaminho terminavam em dedos tão couraçados de anéis, que se diria usar soqueiras de gangster.
Enroupara-se com uma elegância anacrónica e piedosa de coquete.
O cantor António Calvário haveria de reconhecer nela a madura de sonho que em 1966 lhe surripiou um beijo lateral e um postal autografado.
Paguei e desandei.
A noite tinha purificado as vielas.
À porta do restaurante chinês, um gato, vivo por milagre, lavava a cara com gestos de tenista.
Passei a loja das bicicletas e o Salão do Reino de Deus.
A bagagem pesava-me menos do que o coração.
Entrei na mesma churrasqueira a cujo balcão em U sentei outrora, comendo frango, o cantor Art Garfunkel.
Serviram-me uma travessa inox com frango.
Africanos, eslavos e brasileiros serviam-se do mesmo pasto no rebordo do U.
Era como um parlamento de autistas.
O televisor, num poleiro alto, ardia de frio o telejornal.
Ninguém lhe ligava peva.
A carne crestada ossificava-se, debulhada de pão e garfadas violentas de arroz.
A paz subia com o vinho preto.
Persegui duas azeitonas por puro tédio, no fim da ração.
Um dos africanos tinha pedido sopa.
Serviram-lha.
Espreitei o prato: parecia um olho glauco e verde.
Ele sorveu-a com gestos elevatórios de grande firmeza, cheio de dignidade e encardido de solidão.
No fim, limpou a boca com a mão contrária à da colher e bebeu um copo de vinho.
Então, olhou para mim sem me ver.
Já constava do meu registo de santos negros.
Mas, então, nem eu o sabia.
O telejornal ia na parte desportiva.
Fez-se ainda mais silêncio na sala.
A angústia do Belenenses mereceu dois comentários ao assador de frangos.
Os comentários caíram no vazio das nossas vidas.
Pedi café e para telefonar.
Indicaram-me a ponta do balcão.
Atenderam-me.
Isto foi assim numa sexta-feira.
Eu registo santos e anjos.
Nego, naturalmente, Deus.
Mas anjos e santos são essências inegáveis.
Numa manhã de vento e chuva, concedi-me tréguas e iniciei o meu registo de santos e anjos.
A luz, já havia.
Os anos já corriam com pés de sextas-feiras.
Veio outra.
Tinha vestido um casaco preto, uma camisola castanha e umas calças pretas. Tinha calçado botas castanhas.
O cabelo precisava de ser cortado, mas tinha feito a barba e tomado os comprimidos.
O meu aspecto passava por decente, embora só duas moedas de ouro e meia dúzia das de cobre me restassem no bolso.
Acordei cedo, lavei-me, barbeei-me e comi dois ovos.
Saí para o mundo diagonal da chuva.
Era uma sexta-feira de regresso.
Ia apanhar o comboio da tarde.
Tinham-me prometido dinheiro para a viagem, iam passar-mo pela hora de almoço.
Foi sentado na pastelaria que se me deu a evidência do registo de santos e anjos.
Logo que o decidi, senti-me melhor.
Até à hora do comboio, tinha já tudo em ordem, uma vez na vida: a bagagem irrisória, o corpo abastecido de fármacos, café e fármacos, um registo decidido e um futuro breve e ardente como um fósforo ou um beijo.
Bebi água mineral e suportei a euforia.
A minha vida já era então esta de agora: paralela, sempre ao meu lado sem me tocar – como se, em vez de vida, eu tivesse mas era um cão.
Entramos num sítio escuro, os olhos demoram a habituar-se às trevas, depois vêem – assim é quando a vida nos regressa ao cabo de escuros anos.
Escuros, crematórios anos – agora, ainda, sempre, outrora.
De modo que a minha vida regressara – e tudo foi depois possível, mas só antes de ter sido.
Assim acontece nas epifanias.
Bastou-me um pouco de atenção, a chuva do lado de fora da pastelaria.
Na manhã do casaco preto, tomei os anjos e os santos com um quartilho de água mineral.
E um pouco de whisky também, vá lá.
O registo já é.
É a louvação objectiva da pureza diáfana de homens negros comendo sopa verde, de cantores arruinados pela moda seguinte, de putas coloridas como comida de mostrador, de te esperar eu, de santos e de anjos.
(Registar-te-ei.)
Também é a corrida dos anos e das noites e do mar inflacionados pelo inverno.


11 comentários:

Anónimo disse...

Belo. Como saúdo o teu regresso à literatura.

Daniel Abrunheiro disse...

nunca de lá saí, paulo. saúde ao teu regresso, por igual.

Anónimo disse...

Fazes o favor de ler os meus comntários anteriores? :) Já tinha regressado aos comentários, foi compulsivo :)

Anónimo disse...

Achei piada ao facto de seres agnóstico mas, e se não fosse isso, "era islão já". Esta foi só para concordar com a tua ideia de ampla literatura: de tudo aquilo foi o mais belo que li.
Não que pense exactamente assim - o meu ateísmo não me deixa espaço - mas são ideias que sobrevoam como os anjos e como a tua literatura.

Daniel Abrunheiro disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Daniel Abrunheiro disse...

paulo: só sou agnóstico por recusar, evidentemente, a recusa da evidência.
neste caso, a evidência é a falta de deus.
e o excesso de humanos.
alguns, registo, ainda assim.

Anónimo disse...

Isso, isso, isso mesmo. Belo Daniel. A sério. Que síntese, meu deus. Está tudo aí. Como gosto de ler coisas assim, O meu ateísmo é apenas isso. A "coisa" é mesmo e só com os humanos e já dá trabalho que chegue.

Anónimo disse...

Se em vez de aglutinar alguns textos os começar a cortar, talvez possa vir a ser um grandíssimo escritor.Tem tudo para isso.
cumprimentos
Miguel Fonseca

Camarelli disse...

Grande escritor é (também) quem se escreve sem que se acabe.
Isso tudo tens.
E mais.
1 Abraço!

Anónimo disse...

Gostaria de saber o sentido que o sr mataarbustos dá à sua frase. Será ignorância ou apenas iliteracia? Os opígonos são sempre piores do que os originais.
Respeitosamente
Artur Fonseca

Camarelli disse...

É de facto muito simples, apenas uma analogia com uma nascente: consegues pará-la? Ou admiras indiferentemente uma torneira aberta?
Nota: não escrevi em resposta ao Miguel Fonseca, apenas aproveitei o comentário dele, brincando até com a última frase dele.
Não dês demasiada importância se o que lês é ignorância e decerto alguma ileteracia que o meu campo é outro. Quem dera que os meus amigos letrados tentassem destemidos os números como eu as letras.
Cordialmente,
Carlos Daniel

Canzoada Assaltante