15/09/2006

Camilo Ardenas ao Domingo Olhando a Oliveira do Largo

“Deus não existia antes de Bach e não voltou a existir depois dele.” Assim pensa Camilo Ardenas, vendo chover no largo da aldeia. Uma oliveira escurecida de água e encanecida de prata, sem ter luz de que fabricar sombra, toda ela sombra de prata e água, parece-lhe uma estátua erguida à solidão do lugar. No largo, um monte de pedras aguarda que o domingo acabe e os operários regressem das tocas, amanhã. Hoje, os operários ouvem o relato da jornada de futebol dentro da taberna. Cheiram a azeite, a alho, a vinho e a enchidos. Alguns olham também a oliveira e as pedras, mas sem vê-las nem pensar em Deus e em Bach como o senhor Camilo Ardenas. O céu é uma tampa posta sobre a panela da terra, o dia é uma cozedura lenta e fria. Mas Camilo não se aborrece. As coisas do mundo interessam-lhe desde sempre, mesmo que o mundo agora não seja mais do que isto – uma aldeia tornada concêntrica pela força magnética do largo, onde a oliveira e a chuva da tarde de domingo são uma espécie de caligrafia que é possível ler em todos os sentidos. No fim, não há sentido algum. Assim pensa Camilo Ardenas, que nem de pensar tantas frases curtas se aborrece.
Em poucas horas, a chuva e a escassez da iluminação pública cerrarão a aldeia. Hão-de apertá-la num torno de silêncio e humidade. Só algum cão há-de tossir nas trevas, mas brevemente, a raiva de aprisionado. As galinhas farão de travesseiros de penas umas às outras enquanto sonham com milho e furões. Na cama, Camilo deixará que Bach sonhe por ele até que o leitor de cassetes diga boa-noite com um estalido breve, mais breve até que Deus.



Botulho, Tondela, 30 de Outubro de 2005

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Canzoada Assaltante