01/01/2022

PARNADA IDEMUNO - 861 (quase todo)

© DA.



861

Terça-feira,
28 de Dezembro de 2021

    Perde-se de ser
    (mas não de ter sido)
    criança aquele que aprende que o
    Para-Sempre
    dura pouco.

    E depois a idade instaura uma linguagem mais precária do que a que soía. Continuam maravilhosas, as aventuras adultas – mas menos.
    Todo este ano segreguei (babujei) um livro sem destino. Urdi-o respirando. (O doutor Carvalho veio ao pão, tem a mulher muito doente, não há como evitar interná-la em um Lar terminal, como acontece ao meu mano Zé Daniel.) Estamos a 28 do XII já.

    Um clarão azul, de céu estatelado: o mar.
    Flama de ouro quase branco: a arena-praia.
    Que ninguém mais se mexa: e daqui não saia.
    Está Cristo à janela: aquela de Tomar.

    Falta-me aquilo que é só dos gatos.
    Digo: aquele elo não-pensado, aquela soberania.
    Ou: aquela pertenc’essência, por assim dizer.
    Devimos todos cães batidos pela chuva seca.

    Gostaria de ir a casa de meus Pais & eles estarem lá.
    Parece que não pode ser, que já são do Obituário sócios.
    Nada sei já de seus assuntos, contratos, negócios.
    Felizes-para-sempre: como eles é que não há.

    Ou: E-morreram-felizes-para-sempre.
    Veio a Bruxa de maçã envenenada.
    Recordo o senhor Alfredo Bonacho, era empre-
    gado da pedreira dos mármores, ora desactivada.

    Em diversa quietação nos vejo imersos.
    (O Tonecas é mecânico; o Quinzinho faz versos.)
    Abrupta confusão torna os Sampaios perversos.
    (O velho fecha a janela; o moço escancara universos.)

    Não me dês, não te peço.
    Não me peças, não te meço.
    Não me fale de Paris, senhor Assis.
    Nem você de Capri, menina Lili.

    Uma poalha-d’água, sabeis?, daquela mui pulverizada, instaura sua pantalha óptica na finimanhã da minha terça-feira. Vieram os homens do gás, revolveram a grade à porta da mercearia, foram-se embora como versos esquecíveis. No Sheraton do Porto, era isto em 1997, conversei com pessoas cujos nomes se me desvarreram sem retorno. Então, já meu Pai não era vivo. (Gostaria de ir a casa de meus Pais & eles estarem lá.) Uma rapariga comia seu mil-folhas, dela os gestos eram de borboleta transparente(: ter-se-á já casado? e contra quem?). Hoje, nada disto é possível.
    Um lauto cozido de vaca, porco, enchidos & horta vaporizou o ar da sala-de-jantar. (Isto foi há tanto, mas tanto, que é mais saitanto do que entretanto.) Presidia ao repasto o senhor meu Pai, que amava cada filho como moeda-única de uma numismática privada. Então, eu ainda não bebia vinho, os mais velhos sim mas não de mais: lições que perdi, venha cá o Diabo agora instruí-me-las. Era o Natal de 1970? Não sei. Nunca mais saberei. Mas já soube. Eu era então contemporâneo da gratidão-sem-salamaleques-de-pura-e-simplesmente-existir. A ninguém tem tal que importar. Isto só é assunto se aparecer em literatura – mesmo da fraquita, como a minha por acaso nem é.

    You may call me but I shall not go,
    como dizia o Ernesto, que era inglesado.
    Já o Tomé seu irmão, letr’afrancesado,
    iria se o chamassem, mas nobody did so.

    Banhos de luz em amorfa sonhadoria,
    muito sonho eu sempre a preto-&-branco!
    Passam um ganso doutor & um bancário manco,
    não passam da noite os desejos do dia.

    Em recanto hóspito do bar-comércio coimbrão,
    sento-me neste papel com trejeitos de cão.
    Penso em Charles Dickens, em Carlos de Oliveira,
    em Marguerite Yourcenar & em Celorico da Beira.

    Não sou continente de desrazões acusatórias.
    (Posso dever às Finanças, mas não à Moral.)
    (Devo também, mea culpa, à Segurança Social.)
    De resto, d’hipotecas não hei moratórias.

    Confundi desejo com amor – e saí esfarrapado.
    Foi tal vazar os dois olhos – sem Lusíadas a nado.
    Passa um rapaz de acordeão banha-ventral:
    transborda de untos que nem o Pai-Natal.

    Ocorrem-me também José Régio & Vergílio Ferreira,
    o pobre António Nobre & o roto Botto
    (que era engenheiro de coçar o escroto,
    coitado do Botto, morto daquela maneira!).

    A probabilidade de morrer não m’aparta do comércio.
    (Nem a certeza de tal ser me poupa um sestércio.)
    Eu tenho de ter-vivido-no-futuro a condição.
    (Mas nem tal me faz poupar um só tostão.)

    Esbatida manteiga (por assim dizer), a luz das 13h15m asila-me em reca(n)to. Estou de (p)rosa. Dá-me para recordar amantes que não tive & livros que não cheguei a ler. Na minha idade, é difícil chegar a donzelas de, nas mãos, caderno-em-branco. O mais certo é irmos bom-diando-tardando os condutores-bus do busílis-de-cada-dia: Et omnibus et cætera. Talvez porém todavia & no entanto eu me explique, perdão, implique mais bem em verso(s):

    (...)

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Canzoada Assaltante