22/01/2022

REGISTOS CIVIS - 32


© DA.


Esplanada & balcão – 32


    


    Na esplanada, findo o dia dito útil, Maria Gregório Crispim Belo fuma algo consoladamente. Acaba de merendar: omeleta de chouriço picante, pão de centeio, azeitonas, pickles, um quartilho de tinto maduro. Espera a vinda da amiga Ana Beatriz Polaina da Cruz, que sai às dezanove do escritório. A meteorologia acertou mais ou menos: não ferve nem gela. A luz titubeia alguma coisa. Por instantes, a aragem aguça-se na pele. Nada porém de lancinante, isto ainda não chegou à Sibéria.
    O advogado (na reforma) Horácio Alberto Fidalgo Sarmento boceja muito fundo & muitas vezes. Não é que se sinta entediado. Boceja porque sim. Já leu muito, talvez de mais até – agora, prefere ir cuscando os vivos, seus casacos, seus gestos, sua gramática, seus consumos. Todos os dias aqui almoça com a mulher, D.ª Alessandra Bella de Luca Fontana de Fidalgo Sarmento, nascida em Verona há bem mais de quinze dias. Alessandra é uma senhora muito bonita – e a idade septuagenária mais lhe reitera a beleza natural.
    Ei-los, festivos sempre, sempre de/a bem com a vida: Pedro Miguel Returvo dos Santos, Sílvio André Martins da Cunha, Anacleto Basílio Saraiva da Ponte & José Licínio Gomez Orlando. Velhos companheiros da/para a vida toda. Pedro, médico; Sílvio, merceeiro; Anacleto, informático; Zé Licínio, nem o próprio sabe bem (o) quê. Vêm cervejar-se copiosamente, tremoçar & amendoimar, haja sede, que vontade não falha.

    Esplanadamo-nos todos em serena assembleia
    Por ora nos não fere a mortandade
    Este é um recanto quieto da Cidade
    Nem sempre a vida é vil, desgrácil ou feia.

    Senhor Fontes, como tem passado a senhora sua mãe?
    Dona Lucrécia, e o seu gatinho, tem ele melhoras?
    Cumprimentos à Ricardina & à Celestina também!
    É impressionante, já são quase as oito horas!

    Em pensamento distraído, isola-se a pessoa de os ruídos externos, do bulício mundial em local versão. Herculano: mui escaqueirado é o Português que fala, caraças. Gina do Toninho: ainda graciosa & raçuda, Deus a conserve em saúde. Belarmino do Azeite: judeu estuporado, avaro, escarninho, má-raça.
    Já abalam os quatro rapazes. Amanhã será, ou não, outro dia. Por ora, importa apreciar como convivem a Isabel & a Beta. Muito amigas. A Beta nasceu em Luanda; a Isabel, no antigo Instituto Maternal, ali à Sé Velha, onde depois funcionou o Conservatório de Música e agora funciona não sei que instituição. Também elas merendam: Isabel Maria Régio da Fonseca, bolo-de-arroz & chá de tília; Maria Alberta Fernandes de Lima, mil-folhas & abatanado.
    O televisor, em perpétua vitalícia imorredoura eterna sintonia com o futebol, transmite um palpitante jogo dos distritais de Setúbal. O único interessado é o idoso Túlio Mário da Gama Pestana, desde 1981 que está confinado à cadeira-de-rodas, mau desastre rodoviário lhe ceifou a locomoção andarilha.
    Há serenidade por aqui. Sim, há. Não é o paraíso – basta não ser o inferno. Este tasco está aberto há bons quarenta anos. Já muita freguesia dele esticou o pernil nos entretantos de quatro décadas. Alguns nomes são ainda mencionados, de quando em vez acontece. Outros, todavia, apagaram-se para sempre, não há quem os evoque. Dissolveram-se no éter do esquecimento, é como se nunca houvessem peitado este balcão, empinado a sua imperial, sorvido o seu porto, rechupado o seu tinto, emborcado o seu bagaço. Nota: o esquecimento (também) favorece a serenidade.

    A cada um/a seu percurso - com ou sem relato.
    Acaba volvendo-se, tudo, terraplenadamente igual.
    (Decorre o anterior verso de a nossa condição mortal,
    condição com que o mero nascer assina contrato.)

    Da mercearia em frente, sai bem abastecida
    Ruténia Bencanta de Carlos Osório.
    Traz muita hortaliça & pão & bebida
    & até cinco latas de atum Tenório.

    Equânimes, respiramos. Ainda.

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Canzoada Assaltante